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O chamado da montanha

Numa manhã de julho, eu estava no alto da montanha conhecida como Cabeça do Leão, na região de Aiuruoca, no sul de Minas, quando tive uma iluminação. Ao contemplar a paisagem ao redor, o imenso vale verde todo preservado pelos poucos moradores da região, o céu azul, as cachoeiras que despencavam pelas pedras distantes e se apresentavam a mim como fios d´água, eu compreendi coisas que dizem respeito à minha vida no presente e no futuro, o próximo e o distante. 
Saímos de Brasília e viajamos cerca de 1.500 km para chegar até lá. A intenção era cruzar toda a Serra da Mantiqueira, a partir da região de Atibaia, no estado de São Paulo, até Conservatória, no Rio, passando por cidades paulistas, mineiras e fluminenses. De preferência por estradas de terra, algumas das quais nem constam nos mapas, como os 37 km entre Passa Quatro e Virgínia, um dos mais belos trechos de toda a região. 
Havia um roteiro prévio do qual constavam cidades como Joanópolis, Monte Verde, Gonçalves, Piranguinho, Mauá. Sem reservas em hotéis nem data marcada para chegar a cada lugar, o trajeto seria definido à medida que a viagem acontecesse. A ordem era percorrer as estradinhas, respirar poeira, descansar nas praças, observar as paisagens, cumprimentar os passantes. 
De Atibaia (SP) pode-se partir para Joanópolis (SP), ou pegar a rodovia Fernão Dias e subir até Extrema, Camanducaia ou Cambuí – todas essas cidades, mineiras, são porta de entrada de uma região que mistura ingredientes interioranos de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro para gerar uma cultura especial, que se chama Serra da Mantiqueira. 
No percurso entre São Francisco Xavier e São Bento do Sapucaí, nos deparamos, pela primeira vez, com Gonçalves. Cidade de 4 mil habitantes, com poucos bares e restaurantes, mas com muitas pousadas em seu entorno, recebe turistas em busca do sossego característico da região. Os atrativos não são evidentes – têm que ser descobertos, como a incrível cervejaria localizada no bairro de São Sebastião das 3 Orelhas. 
Quem vem de Cambuí para Gonçalves vai encontrar em Córrego do Bom Jesus uma pequena cervejaria, que lembra um botequim de beira de estrada mas onde se fabrica uma das melhores cervejas artesanais da Mantiqueira. Batendo um papo com o cervejeiro Júlio Cesar Sartori, descobri que ele é amigo do escritor e professor Gilberto Abreu, passense morador de Ribeirão Preto, com quem desenvolveu alguns projetos editoriais. 
Para quem vive em grande centro urbano, viajar por cidades como Virgínia, Gonçalves ou Monte Verde é uma experiência de libertação. Mais ainda quando o trajeto é feito por estrada de terra, que geralmente os motoristas recusam. A estrada de terra é um caminho, uma trilha no meio do mato, que seres humanos construíram para se deslocar. É sujeita às intempéries e nela a natureza mostra sua cara: se chove, enche de barro; na seca, a poeira se levanta. Ao lado da estrada, há uma cerca e atrás dela bois mirando a paisagem, árvores que acolhem pássaros e dão sombra. Às vezes uma boiada interrompe a passagem, e é preciso esperar com paciência. 
As rodovias são grandes obras de engenharia, por onde máquinas se deslocam em grande velocidade. Às suas margens, há postos de gasolina, indústrias, galpões, às vezes até árvores, mantidas a distância segura. Animais não se atrevem a cruzá-las, mas eventualmente são vistos corpos destroçados daqueles que tentaram. As rodovias exigem desmates gigantescos por onde passam. Representam a urbanidade no campo. No trânsito engarrafado das cidades, somos agressivos, violentos e perdidos. Na verdade, não sabemos quem somos.
De Mauá, no Rio de Janeiro, pode-se viajar até Mirantão, Santo Antônio, Bocaina de Minas, por estradas de terra onde aqueles carrões urbanos, obesos e com cara de machões, não gostam de trafegar. São lugarejos escondidos nas dobras dos mapas, que guardam segredos sob a poeira. No Vale do Matutu, um funcionário da pousada fez para nós uma previsão do tempo extremamente precisa, consultando as nuvens, o sol e o vento. Sem consultar sites de meteorologia. 
Ao mirar o recorte das serras distantes e ouvir o canto do vento, descobri que eu era um ser semelhante aos pássaros que sobrevoavam minha cabeça e observavam minha passagem. Naquele momento, eu vivenciava uma harmonia com todas as coisas à minha volta, e ouvia um chamado que preciso atender.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna
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