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Montevidéu, de Enrique Vila Matas

Foto: Reprodução

Alberto Calixto Mattar Filho

Não é fácil manter uma coluna quinzenal para trazer à luz o tema que mais amo, os livros, a literatura.  Mas tenho conseguido, nos últimos cinco anos, seguir nessa mesma direção. Claro que a infinita riqueza do universo literário sempre nos deixará em falta com esta ou aquela obra, o que, por outro lado, não vai permitir que o tédio dos limites nos atinja.

Em razão disso, tenho tentado ler não somente o máximo possível de clássicos, mas não esquecer os escritores contemporâneos cujos trabalhos vêm repercutindo perante o público e os críticos. Talvez possam se tornar futuros clássicos.

Quando li, na imprensa, meses atrás, uma entrevista de Enrique Vila Matas, me surgiu o interesse de conhecê-lo um pouco. Enrique Vila Matas é um atual e premiado escritor espanhol nascido em Barcelona no ano de 1948, com vários romances, contos e ensaios no currículo.

Lançado em 2022, “Montevidéu”, seu último romance, possui um enredo atraente. Aborda a trajetória de um escritor que vai viver na Paris na década de 70 após ter publicado um único livro. A ida para a capital francesa ocorre porque ele estava sofrendo os efeitos de um bloqueio criativo que o impedia de prosseguir escrevendo.

Viver em Paris era a chave para recuperar a imaginação, mas suas dificuldades permanecem. E o mais grave é que acaba envolto, por um certo período, com o tráfico de drogas, aspecto que me despertou ainda mais o desejo da leitura depois de um rápido olhar pelas páginas iniciais.

Que instigante! A tentativa de resgatar a escrita que, por acaso, deságua no submundo das drogas. O que restaria de uma situação tão estranha assim? Afinal, é o próprio narrador protagonista quem o diz: “Era muito raro não escrever em Paris”.

O que se vai perceber, no entanto, decorrido esse fato inusitado de um escritor no tráfico e no consumo de vários entorpecentes, é que logo veremos, até o fim das 237 páginas, um complexo passeio por sua obsessão de superar o bloqueio que o dominava.

É o momento em que ele passa a mencionar as viagens que havia feito para algumas cidades graças a eventos literários, quando aproveita para fazer menções a muitos escritores que admirava, ressaltando certos livros ou pensamentos célebres das obras que escreveram.

A sua relação com Montevidéu, a propósito, tem origem em um conto que lera do escritor argentino Júlio Cortázar, “A porta condenada”, uma vez que Cortázar, décadas atrás, tinha se hospedado no hotel Cervantes, no centro da capital uruguaia.

No texto fictício de Cortázar, aparece um sujeito que imagina existir uma porta ao lado do quarto em que estava, no mesmo hotel Cervantes, ao dizer que, ali dentro, por detrás da tal porta, havia um bebê sempre aos prantos durante a noite. Mas não se sabe exatamente se isso era real ou apenas fruto das ilusões do personagem.

Já na obra de Vila Matas, o narrador protagonista vai então para Montevidéu com o intuito de se hospedar no mesmo quarto em que estivera Cortázar, tudo para talvez compreender o que lá pudesse ter ocorrido e ainda se livrar do bloqueio criativo.

Obcecado pela porta, almejava descobrir algo sobre o mistério escrito pelo argentino. Se o que Cortázar escreveu era realidade ou pura ficção, onde estaria a realidade? Em que lugar, a ficção? Haveria uma divisão tão clara entre os dois estados quando se escreve? Questões que emergem.

“Montevidéu” é um mesmo um livro bastante difícil. Não há tantos fatos objetivos.  O que existe são os impulsos de um indivíduo em busca de vencer um problema sufocante e, assim, construir um novo estilo.

A obra é muito mais um tratado sobre o ofício de escrever do que uma sucessão de episódios concretos, embora arquitetada sob o gênero do romance e não do ensaio. O que importa ao protagonista é compreender a escrita a fundo, e tudo se passa muito mais no seu imaginário. Tecnicamente, um romance metalinguístico.

Em outras palavras, estamos perante os delírios de alguém que não vive o dia a dia comum de qualquer pessoa. Os delírios de quem quer recuperar o prazer de escrever. Os delírios de um devoto da literatura. De um artífice da palavra. Nada mais lhe tinha importância.

Mesmo que árdua no transcurso, “Montevidéu” é obra de muito valor, justo por trazer ao pódio a escrita, esse ato extremamente solitário, que demanda coragem, concentração e aprimoramento absolutos para o alcance de um estilo próprio.

Os dilemas do escritor personagem de “Montevidéu” podem ser os dilemas do próprio Enrique Vila Matas. Podem ser também, respeitadas as devidas proporções, os dilemas de qualquer pessoa que se disponha a escrever com mais constância e profundidade.

A natureza dos embates expostos no romance me fazem, todavia, não recomendá-lo aos principiantes. Quanto a mim, liberto-me apresentando meu ponto de vista por escrito.

“[…] qualquer versão narrativa de uma história real é sempre uma forma de ficção, já que desde o instante em que se ordena o mundo com palavras se modifica a natureza do mundo.” (pág. 49)

A escrita constrói, interpreta, transmite e documenta o mundo.

Alberto Calixto Mattar Filho escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)

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