6 de junho de 2024
Foto: Reprodução
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
Dias atrás, viralizou um post em que a americana de nome Courtney Henning Novak tece elogios a um dos maiores clássicos da literatura brasileira, “Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. O fato gerou diversas matérias na mídia e fez com que a obra despertasse interesses de quem não a leu.
Repercussões à parte, é preciso notar que não é a primeira vez que Machado de Assis adquire prestígio fora do Brasil, mesmo que em público mais restrito. Há outros estudos e traduções de suas obras por vários países ao longo das décadas.
Ainda assim, persistem dilemas a respeito de quando ou como começar a lê-lo, pois o elevado nível dos textos machadianos pode ser difícil aos alunos do ensino médio. Há aspectos de sutileza, linguagem e compreensão de ironias que demandam certa maturidade.
Quando, por exemplo, nos tempos de colégio, exigiram-me a leitura de “Memorial de Aires”, tive bastante dificuldade para assimilar as ideias desse último clássico de Machado. Alguns anos adiante, pude perceber o alto valor da obra.
Na verdade, questões relativas ao ato de ler sempre demandam várias considerações sobre como os professores podem ou devem transmitir aos jovens o incrível universo da literatura. No caso de Machado de Assis, o ideal é que se comece pelos contos. São textos curtos, e ele também foi um mestre no gênero.
Lembro-me então que, depois desse início, avancei para seus principais romances, e todos me serviram de estímulo para muitos outros escritores. Inegável a importância da literatura para a melhor compreensão da natureza humana, do desenvolvimento linguístico e do raciocínio mais profundo.
Quanto a “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, li-o no já distante 1994, num momento em que eu emendava um livro de Machado após o outro. Creio que haja um consenso de que tal obra, ao lado do também extraordinário “Dom Casmurro”, sejam realmente as mais brilhantes que escreveu.
Naquele ano, publiquei um texto aqui na coluna, com a intenção de fazer um elo entre as excepcionais memórias póstumas e os contextos do dia a dia, inclusive as questões políticas, já que Brás Cubas, o protagonista, havia morrido e, por isso, se sentia livre para expressar sem receios o que pensava de quaisquer relações e interesses humanos. Um defunto autor isento das convenções sociais.
A franqueza que ele não pôde ostentar em vida finalmente era trazida pela morte, pois o fim da existência terrena tornava inúteis o uso dos disfarces e estratégias do cotidiano para atingir a algum objetivo. Genial o enredo. Ultrapassa as fronteiras cronológicas, razão dos clássicos.
Já, portanto, na dimensão espiritual, Brás Cubas, que viveu no Rio de Janeiro do século XIX, diz o que pensa sobre a sociedade, as instituições, os modismos da época, a família e as pessoas, sem pudores de cometer injustiças ou ofender a quem quer que fosse. Livre também para confessar os próprios defeitos e se autocriticar por erros durante a vida, assim dizia: “nada como o desdém dos finados.”
Ao percorrer novamente os olhos pelo livro, percebo a anotação que realizei em uma página de um trecho marcante: “Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade…a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à própria consciência…” Um enredo em que os fatos geram sempre reflexões provocativas do narrador.
Uma raríssima sinceridade, mas com a classe tão própria de Machado de Assis, que constrói a obra por meio de capítulos bastante sintéticos, numa espécie de diálogo inteligente e perspicaz com o leitor. Como ele mesmo diz, uma “obra de finado”, “escrita com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Noutro instante, com “as rabugens do pessimismo”.
Quem se dispuser a ler ou reler esse magnífico romance terá diante de si inúmeros outros trechos célebres. Num momento em que, por meio do impulso da tecnologia, uma infinidade de pessoas libera as palavras para expor seus alcances, produtos e pensamentos, imagine-se como se portaria Machado de Assis ao ter perante os olhos essa verdadeira avalanche de comunicações.
Se, nas décadas finais do século XIX, os acontecimentos que estimulavam a ironia e o sarcasmo de um Brás Cubas já eram tão intensos, o que não estaria sob os fluxos da sua escrita nos dias de hoje? Talvez reescrevesse a derradeira frase da obra: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Como literatura que é, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” não demanda que se concorde ou discorde do pessimismo ou do descaso do protagonista por valores mundanos, mas que se aprenda a admirar o talento, o estilo e a sagacidade refinada desse grande escritor brasileiro.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terr.com.br)