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Machado de Assis manda lembranças

Foto: Reprodução

Em meio à profusão de polêmicas nos universos político e jurídico, que, aliás, se alimentam dos embates, sempre me vêm à memória os pensamentos dos personagens de Machado de Assis em seus extraordinários contos e romances.

Creio que não haja muitas dúvidas de que Machado é um dos gênios da literatura, não somente a brasileira. Imagino que, se ele ainda estivesse entre nós, nunca lhe faltariam ocasiões para emitir sua crítica refinada.

Das mais de seis obras que li do extraordinário acervo que escreveu, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” foi, por certo, uma das melhores, se não, a melhor.

Lembro que, décadas atrás, alunos de uma escola particular de Passos, em razão de uma pesquisa, vieram até mim para indagar o que eu pensava sobre aquela inusitada história que se passava na segunda metade do século XIX.

Na realidade, como grande clássico, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” jamais há de perder a atualidade. Os clássicos possuem a condição de retratar o que sempre carregamos conosco em nossa complexa natureza, mesmo que as experiências narradas tenham ocorrido em séculos pretéritos.

Nascidos durante o Império Romano ou dia desses, lá, no mais íntimo de cada um, estarão presentes o amor, o ódio, as paixões, as expectativas, a generosidade, as atitudes cruéis, a solidariedade isenta de interesses, a hipocrisia, os prazeres, as dores, e por aí vamos.

No clássico de Machado, o protagonista Brás Cubas, um observador dos mais agudos e sarcásticos da sociedade do Rio de Janeiro das décadas finais do século XIX, somente adquire a libertação dos padrões de comportamento em sociedade após a morte.

Li-o em 1994. Quem o leu sabe que o enredo, em primeira pessoa, se baseia nas confissões de um personagem já falecido, um defunto autor, o que torna “Memórias Póstumas de Brás Cubas um autêntico marco da literatura brasileira.

Despido da existência humana, Brás Cubas, que viveu naquele antigo ambiente do Rio de Janeiro, se sente, portanto, livre para dizer o que pensa sobre a vida, a sociedade, as instituições, os poderes, os modismos da época, a família e as pessoas, sem receios de contrapartida ou de errar o alvo.

Nem a si próprio poupava, pois se sentia também em condições de confessar as próprias mazelas e se autocriticar ao expor os erros que cometera em vida, embora não houvesse mais tempo para corrigi-los. Sobrava-lhe o descaso. Como ele mesmo dizia, “nada como o desdém dos finados.”

Ora, se a crítica ao comportamento alheio pode ser útil, como exemplo do que não pretendemos fazer, mais importante ainda é a autocrítica, que, infelizmente, tem sido produto raro nos núcleos da ignorância, da arrogância ou do pensamento raso que normalmente ditam as regras nas relações humanas.

Ao percorrer novamente os olhos pelo livro, percebo a anotação que havia feito em uma página de um trecho que considerara emblemático das intenções de Machado/Brás Cubas: “Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade. . . a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à própria consciência. . .”

                  Em virtude de tal trecho, cá fiquei imaginando a abissal distância da plena sinceridade do defunto autor Brás Cubas com o que se passa ao nosso redor, seja em que contexto o for. Do político ao jurídico, do mundo corporativo às relações privadas.

Por óbvio, a cáustica visão de Brás Cubas sobre nosso comportamento não significa uma sentença definitiva. Evidente que temos fatores positivos a enaltecer e pessoas nas quais ainda podemos confiar.  

                    Mas ler Machado, ainda que mais propício aos leitores maduros, vai além do prazer estético que seu estilo oferece e deságua na expansão do pensamento ou do senso crítico para quaisquer situações.

Já estamos presenciando, no decorrer de 2025, uma nova onda de controvérsias em que as paixões ideológicas e as opiniões favoráveis ou contrárias a fulano ou beltrano, muitas vezes, são emitidas sem maiores reflexões e conhecimento suficiente, uma espécie de overdose de ideias repetitivas das bolhas antagônicas.       

Pois bem, a novela já começou e vai se desenrolar em capítulos sempre mais inflamáveis e, por isso, tendentes a robustecer os fígados. Mas uma pequena dose de prudência sempre será bem-vinda durante o processo em curso no STF.

Não nos esqueçamos de que a crítica a um lado ou a um indivíduo, não exclui a crítica ao outro grupo, nem a outros indivíduos, muito menos a autocrítica.

Volto a Brás Cubas: o atual cenário lhe propiciaria excelentes oportunidades para exercer a franqueza, o desdém, e a ironia sem nenhum pudor.

A verdadeira literatura não costuma trazer respostas prontas, mas, creiam, ajuda a refletir.

     Alberto Calixto Mattar Filho escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mataralberto@terra.com.br).

 

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