Opinião

Lembrança do outro miniconto

6 de fevereiro de 2025

Quando estou envolvido com uma obra, confesso que procuro me entregar ao máximo, sem me permitir a leitura de outras.

Assim tem sido com o extraordinário calhamaço de 629 páginas, “As vinhas da ira”, de Jonh Steinbeck, um livro que está comigo há mais de dez anos, presente de um velho colega de Justiça do Trabalho que já nos deixou há muito tempo.

Jonh Steinbeck é um romancista por excelência, e a experiência com “Vinhas da ira” me causa uma profunda imersão em um panorama vivido nos Estados Unidos décadas atrás.

A literatura representa, antes de mais nada, a possibilidade de viver a vida, o tempo e as circunstâncias alheias, como se pudéssemos realmente nos sentir no lugar daqueles que experimentaram outros dramas, outros êxtases, outras dores, outros prazeres.

Defendo, pois, que não existe arte tão fenomenal para a compreensão das ambiguidades humanas quanto a literatura. Ali, sobretudo nos grandes clássicos, está a chance de tentar compreender melhor a nossa complexa natureza em suas diferentes faces.

Bom, enquanto degusto as páginas derradeiras de “Vinhas da ira”, lembro que, na última coluna, escrevi que, anos atrás, cheguei a arriscar dois minicontos de minha própria autoria por aqui.

Como já reproduzi um, trago agora o outro, mas com certas alterações que o tempo impõe ao estilo de quem pratica a escrita, este ato tão célebre e que exige constante aprimoramento.

Paulo. Paulo Tomázio de Araújo Cerqueira Júnior. Nada pequeno. Como dar título ao livro que apenas gestava em seu espírito era um problema mínimo.

A questão maior lhe parecia o nome do autor. Paulo Tomázio não soava bem. Paulo de Araújo ou Paulo Júnior padeciam do fato de serem muito comuns. Talvez sobrasse mesmo para Paulo Cerqueira. Ele o julgava mais charmoso e comercial para as editoras.

O momento também não lhe era favorável. Nada lhe vinha à memória para enfim explodir o gênio literário que imaginava possuir. Ora, por que tanto pudor de arriscar, de soltar as amarras, de se envolver com a criatividade. Sim, os grandes nomes da literatura provavelmente se jogaram de cabeça. Por que não eu, Paulo Cerqueira?

É certo que gozava de um bom reconhecimento em sua cidade, já em razoável progresso para o que se espera de um município de cerca de 60 mil habitantes, no interior do Espírito Santo.

Atingira o topo da carreira no órgão em que trabalhava, a chefia do posto do INSS local. Para variar, era um dos infinitos bacharéis em direito do Brasil.

Mestre em previdenciário, defendera com louvor sua tese e recebeu os devidos reconhecimentos da banca examinadora da Federal de Vitória. Onde houvesse alguma dúvida quanto aos labirintos das licenças, perícias, benefícios, aposentadorias e tantos aspectos burocráticos, lá estava o doutor Paulo para resolver os imbróglios. Comandava também um grupo de 18 funcionários, mas isso não lhe era nada prazeroso.

Leitor voraz, via, pois, no ato de ler um momento de paz, de solidão necessária e até de saúde emocional. Faltasse a leitura, e o crônico incômodo com a realidade se tornava um verdadeiro suplício para ele.

Aliás, acreditava mesmo na necessidade de ler cada vez mais para, finalmente, elaborar seus contos, versos e o ideal maior, os romances.

Mantinha admirações, claro. Como Dostoiévski conseguira criar “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamazovi”? O que deu em Saramago quando arquitetou “Memorial do Convento”? O que dizer do legado de Machado de Assis? E Garcia Márquez em “Cem Anos de Solidão”?

Na realidade, Paulo se sentia um invejoso. Queria louca e obsessivamente ter a mesma capacidade de criação de seus ídolos. E o mero desejo, havia tempos, saltara dos níveis aceitáveis para os doentios.

O pior é que não dividia nada com ninguém, o que agravava as tormentas. Não era capaz de gritar que estava doente, de bradar por socorro, de vociferar que sofria de um mal psicológico que o atacava em intervalos cada vez menores. Uma neurose a largos passos para terrenos muito mais problemáticos e perigosos.

Ainda assim, lá estava o Dr. Paulo atrás da mesa, envolto com os inúmeros processos administrativos do INSS, essas questões de suma importância para a resolução dos problemas alheios. Um mestre no deslinde de encrencas múltiplas.

Pois bem, naquele estressante 14 de fevereiro, acreditava que viria a sofrer um fulminante ataque apoplético, daqueles tão bem narrados por Eça de Queiroz. É que os abismos entre realidade e desejo atingiam o ápice. Foi-se o controle de vez.

Ao final do expediente, subiu, portanto, os degraus do pequeno apartamento onde vivia sozinho após três anos do divórcio. Os namoros também não engataram os ritmos ideais. Foram apenas sexo casual.

Ao chegar, tomou duas boas doses do Chivas 21 anos, pegou o velho caderno de anotações e começou a escrever de modo frenético. Ufa! Percebia que aquele manuscrito de médio porte era, de fato, um texto com valor literário.

Deixou-o sobre a mesa. Tomou mais duas doses do Chivas. Abriu o cofre. O calibre 38 já estava carregado.

Só a literatura podia libertá-lo. Noutra dimensão, suas gargalhadas estrondosas ecoavam por todos os quadrantes do espaço infinito.

Alberto Calixto Mattar Filho escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br).