23 de janeiro de 2025
Gosto de defender a ideia de que a literatura pode ser um alívio e uma luz para as avalanches de polêmicas diárias, que, em razão dos tempos tecnológicos, ocorrem à velocidade da luz e se esvaem ao sabor dos ventos.
A literatura amplia a compreensão da vida, melhora os níveis de linguagem e possui a condição de ser − no caso dos clássicos − eterna, ainda que milhares de obras tenham recebido as influências das circunstâncias em que foram escritas.
Sim. Os fatores externos sempre mudam, mas o coração do ser humano, no que tange a seus sentimentos essenciais, permanece o mesmo, segundo palavras do escritor argentino Ernesto Sábato.
Lembro que, há muitos anos, cheguei a arriscar dois minicontos, de minha própria autoria, neste espaço, o que me provoca o impulso de reproduzir agora o primeiro de ambos, publicado no já distante 2013.
Manterei a menção aos nomes reais daquele contexto. Mas a linguagem literária prima pela simbologia e faz a mensagem perdurar, independentemente de nomes. O leitor pode usar os que lhe convier. Nada altera o conteúdo.
Embora atingido por uma estranha doença, o protagonista que criei nos remete a um valor essencial nas relações humanas, a confiança. De fato, sem confiança, não há negócio, amizade ou até amor que prospere. Sem inspirar confiança, o poder instituído também sofrerá graves percalços em seu trajeto.
Aristides Gouveia era homem admirado no meio em que vivia. Protético muito bem-sucedido, dele se socorriam muitos dentistas em sua cidade, o pujante município de Dálias, no interior do Paraná, de quase 120 mil habitantes.
Não parecia estar com seus 59 anos de idade. Em razoável situação financeira, fruto de anos de trabalho e economias, chegou a conhecer vários locais do Brasil e alguns do exterior. Tinha uma única filha, Laura, pediatra de renome em Dálias, e de sua mulher, Maria Tereza, professora universitária aposentada, nada podia reclamar. Ótima companheira, sempre lhe dava forte apoio em quaisquer atividades.
Presença constante em inúmeros eventos, com vasto círculo de amizades, Aristides era católico fervoroso, assíduo em missas, pastorais e outras entidades, além de grande participante nas campanhas filantrópicas em sua terra. Não havia quem ousasse lançar-lhe máculas no currículo.
Popularidade em alta, tornava-se natural que recebesse assédios de grupos políticos para integrar a Câmara Municipal ou a Prefeitura, quem sabe até uma cadeira na Assembleia do Paraná, tamanhas suas relações e serviços voluntários prestados à Igreja e à sociedade.
Resistia, no entanto, a aceitar cargos públicos, a despeito dos fluxos de tentação vaidosa. Talvez no próximo pleito viesse a dar o esperado sim aos insistentes pedidos de filiação e candidatura. Mas, por ora, preferia continuar no topo de mais uma das várias entidades privadas de Dálias, sobretudo os clubes sociais. Estava no terceiro mandato de um desses. Reconhecia-se por todos os cantos que Aristides Gouveia era um entusiasta das instituições.
E não é que, de repente, meio que do nada, após uma noite de sono, e logo no café da manhã, o admirado e prestativo homem quase faz Maria Tereza sofrer um colapso, ao lhe dizer, após minutos de silêncio, que estava jogando tudo paro alto a fim de sair sem rumo pelo mundo, sozinho e livre de amarras. Dinheiro para começar a nova caminhada ele possuía, e se algo faltasse no transcurso da aventura, procuraria se virar como pudesse.
Claro, deixaria uma boa reserva para Maria Tereza. Já não possuíam grandes despesas. Ela gozava sua aposentadoria, os aluguéis do casal, e a filha Laura poderia ajudá-la se preciso fosse.
Após imaginar que tudo não passava de pequena brincadeira do marido, Tereza percebeu a seriedade do propósito e, aos prantos, começou a questioná-lo e pensou até em se socorrer dos vizinhos e amigos. Nada adiantou. Nenhum apelo o demoveu. Aristides partiria.
É que ele fora acometido de uma terrível doença que atacava em fração de segundos e alterava toda a vida do sujeito. A doença da descrença. Isso mesmo. Um mal até então recente, cujas estatísticas demonstravam que a pessoa se tornava tão arredia e libertária que só lhe restava correr loucamente mundo afora.
O bom Gouveia agora desacreditava de tudo e de todos. Dos políticos, das entidades que presidiu, das religiões e do Papa Francisco, antes seu grande ídolo. Afastava-se, pois, de Deus e dos princípios da educação. No campo da saúde física e mental, não confiava mais nos médicos e nas receitas de bem-viver, logo ele, um mestre da autoajuda e do incentivo nas antigas pastorais. Desprezava amigos, artistas, sindicalistas, historiadores, liberais, conservadores, democratas, ditadores, escritores, desembargadores, advogados. Desacreditava os machões homofóbicos e a nova horda de gays e trans em busca de igualdade.
Não tinha fim o rol de descrenças. Não acreditava em empresários consolidados ou emergentes. Não podia nem ouvir o nome Lula, Dilma, Aécio ou Marina. Não podia ouvir nomes da mesquinha política de Dálias. Se alguém lhe falasse em futebol – por sinal, torcedor fiel do Palmeiras por décadas −, isso lhe dava urticárias, e Felipão, Murtosa e Parreira lhe causavam imenso tédio. No fundo, não acreditava em si mesmo.
Passaram-se cinco anos e pouco de que fora acometido pela doença da descrença. Estudos alertavam que o início da chaga era fulminante, mas que, no decorrer dos tempos, os efeitos talvez se abrandassem, até que a vítima caísse em si e voltasse ao normal. Meras teses sem comprovação efetiva.
Foram atrás de Gouveia. Ele realmente tinha penetrado mundos. A última notícia que obtiveram é que um sujeito maltrapilho, de longas barbas brancas e cajado em punho, vociferava solitário em gélida noite do Saara, quando alguns beduínos o arrastaram a uma cabana.
Alberto Calixto Mattar Filho escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br).