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Lembrança de um clássico do nazismo

Foto: Reprodução

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO

 

Depois de os “Contos de Kolimá”, do russo Varlam Chalámav, e de outros dois textos que já escrevi sobre “Arquipélago Gulag”, do também russo Alexandre Soljenítsin − ambas as obras sobre os trabalhos forçados na Sibéria durante o arbítrio de Stálin na antiga União Soviética −, relembro de outro livro da mesma natureza, porém dos anos de Hitler na Alemanha no período da Segunda Grande Guerra.

Refiro-me a “É isto um homem?”, do italiano Primo Levi, que, no gênero da literatura de testemunho, narra, em 255 páginas, o seu período de detento por quase um ano nos campos de Auschwitz, quando do ideário nazista de Hitler. Um clássico das barbaridades daqueles anos de guerra.

De mais a mais, tentar compreender a história significa não perder de vista o passado. As três são obras de imenso valor para dar um mínimo de subsídio a quem quer que seja, sobretudo quando estão em jogo as relações de poder.  Impossível sair ileso de quaisquer das leituras.

Primo Levi era um químico nascido em Turim, em 1919, que fora deportado, ao lado de muitos outros judeus, para Auschwitz, no começo de 1944, em razão das perseguições de Hitler.

Agraciado com a sorte por ter sobrevivido ao martírio de uma prisão torturante, resolveu deixar as lembranças nas páginas de “É isto um homem?”. Sabe-se que, após 1945, voltou à Itália, recomeçou sua carreira de químico e chegou a publicar outros livros de menor calibre, entre ensaios, ficção e poesia. Morreu em 1987.

Como ele mesmo expõe no prefácio, o que se lerá na obra nada acrescenta quanto a detalhes atrozes que a história bem registra a respeito dos métodos do nazismo. Parecia não haver limites para a prática de atos desumanos.

Acrescenta, no entanto, que escrever sobre isso lhe serviu como uma catarse, uma tentativa de expurgo dos sofrimentos a que ele e seus companheiros de Auschwitz foram submetidos. À semelhança de pacientes que precisam admitir para si próprios as doenças da alma como forma terapêutica de alívio das angústias.

Na realidade, quem viveu ou testemunhou algo tão cruel provável que jamais conseguirá apagar da memória os abusos sofridos, mas o ato de escrevê-los adquire valor inestimável, já que documenta para a posteridade os aspectos mais sombrios da natureza humana, quando o que está em jogo é o exercício do poder sem nenhuma barreira ética ou moral.

Para enfocar o que experimentou, Levi constrói o texto ao estilo de um diário de observações em relação à disciplina, ao trabalho na fábrica de borracha, ao clima, à parca alimentação, à falta de higiene, às doenças, às condutas dos demais prisioneiros e às negociatas escusas entre eles próprios na troca de objetos de uso necessário, como talheres, roupas, calçados e até fatias de pão.

Os trabalhos exigiam um sacrifício hercúleo na condução de instrumentos pesadíssimos no solo da neve, o que causava sérias feridas nos pés e outros membros. Os alojamentos não ofereciam espaços dignos, e as camas tinham que ser compartilhadas por dois, tudo agravado pela fome, uma vez que a alimentação por sopas ralas era bastante insuficiente.

Naquele ambiente caótico, até os algozes de escalões inferiores do campo atuavam como se trabalhassem num serviço burocrático qualquer. Apenas o faziam para atender a um modelo implacável de crueldades e contra o qual nada podiam opor. Algozes desprovidos de rosto, de alma, de vontade própria, diz.

Imagine-se trabalhar arduamente em condições climáticas e higiênicas desfavoráveis sob regras, que, uma vez descumpridas, poderiam levar aos espancamentos ou até às execuções sumárias, e ainda com as agruras de uma fome constante. Pois era o que acontecia. De arrepiar.

O fato é que recebemos todo o impacto da série de suplícios e situações degradantes que não mais se admitem em qualquer mundo minimamente civilizado.

Talvez a morte represente, nesse caso, uma das formas de libertação. Mas Primo Levi, como dito, sobreviveu, pois não se esqueça de que o homem costuma nutrir o instinto de sobrevivência mesmo nas piores circunstâncias.

O relato que nos escancara os horrores do nazismo que o atingem apresenta então a busca por um mínimo de humanidade em um cenário repleto de dores e quase que isento de esperanças.

Seu texto não vem, portanto, carregado de ódio, mas sim da prevalência do equilíbrio e da lucidez em meio ao inferno das circunstâncias. Restava-lhe somente a procura da reciprocidade de bons sentimentos e atitudes em parceiros de infortúnio para tentar viver o dia a dia sem pensar no amanhã.

Fiel a tudo que ali ocorria, Primo Levi torna os capítulos finais ainda mais dramáticos, quando já se avizinha a derrota de Hitler, e os últimos detentos lutam pela vida sem nenhuma certeza de que obteriam êxito.

“… livre da fúria do vento…aparece a companheira de todo momento, dos domingos de folga: a pena de relembrar, o velho tormento de me sentir homem, que, logo que a consciência sai das trevas, me acua de repente como um cachorro que morde. Então pego lápis e caderno e escrevo o que não saberia contar a ninguém.” (pág. 208)

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)

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