20 de março de 2025
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No atual estágio em que o acirramento de ânimos dá as cartas, pensar com um mínimo de equilíbrio parece ser a única alternativa para quem não pretende aderir à cegueira das paixões políticas.
Digo-o porque, ainda que no seio de um cenário de radicalização das bolhas ideológicas e antagônicas, creio que a crítica a um dos lados, não exclui a crítica ao outro, muito menos a autocrítica.
A propósito, é preciso lembrar aos que tanto louvam a democracia que o verdadeiro Estado Democrático de Direito é aquele em que precisamos respeitar, sobretudo, o direito alheio. Sobretudo, o direito do adversário.
Chega a ser infantil que defendamos os nossos próprios direitos e os de quem pertence à nossa bolha, mas atiremos ao abismo os direitos dos acusados ou dos integrantes da bolha diversa.
O democrata autêntico exige que quaisquer processos transcorram no âmbito do mais abrangente direito de defesa. Por piores que tenham sido os delitos cometidos, a sensação de que os processos não seguiram os estritos procedimentos legais deixarão rastros danosos ao País e a suas instituições.
Independentemente de questões contemporâneas, pretéritas, ou futuras, trata-se de princípios que devem ser enaltecidos por todos os indivíduos, mesmo que de correntes contrárias.
Ora, os sujeitos que expelem palavras de ordem pelo fígado em nome da ideologia política – e os há em profusão – seriam os primeiros a pleitear amplas garantias de defesa e o devido processo legal, caso investigados ou denunciados em algum episódio.
Por certo, tais indivíduos desejariam que seus casos fossem julgados por órgãos imparciais. Em suma, as cortes da Justiça têm que ser técnicas. Sempre. Nunca políticas.
Em razão disso, trago à baila os pontos necessários do que já publiquei, aqui e na segundo edição do meu livro, sobre um dos clássicos mais famosos de Kafka, “O processo”.
A obra − como dito naquele texto – talvez estimule o pensamento sobre uma das piores sensações da existência, a da injustiça, mesmo que Kafka não tenha tido esse objetivo, e o texto possa ter surgido apenas dos fluxos de sua genialidade. Mas os clássicos costumam gerar análises sem limites de tempo ou circunstâncias.
Franz Kafka teve vida curta e atribulada. Nascido em Praga, em 1883, faleceu em Viena, em junho de 1824, vítima de tuberculose. Doutor em Direito, pouco exerceu o ofício, já que sua paixão era mesmo a literatura. “Tudo que não é literatura me aborrece” dizia.
Sua obra sempre aguçou a crítica por ostentar caráter enigmático e trazer situações absurdas com a técnica da indiferença, como se o absurdo fosse algo natural ao que ele escrevia. Eis os motivos de o adjetivo Kafkiano ter adquirido corpo para significar estranho, incompreensível, refratário a explicações claras. Complexo, enfim.
Apesar de ter lido três dos livros que escreveu, minha primeira experiência acontece justo em “O processo”, que li exatamente entre janeiro e fevereiro de 2002. Lá se vão anos!
Na obra, Kafka parece degustar nossas vísceras no momento em que nos lança na trajetória de Josef K., o protagonista, que havia sido acusado de algo e processado em seguida sem que se soubesse, em nenhum instante, que delito cometera.
Basta ler a frase inicial do narrador: “Alguém devia ter caluniado a Josef K., pois, sem que tivesse feito qualquer mal, foi detido certa manhã.” Eis o início do drama que se desenrola por 279 páginas.
Submetido, pois, aos trâmites do processo, o protagonista é atirado nos braços de uma justiça obscura, misteriosa, corrupta, com juízes corruptos, procuradores e advogados corruptos. Uma situação tão angustiante, que todo o enredo acaba relacionado ao processo que lhe é movido.
A estranheza vai então ganhando intensidade ao passo que todos os demais personagens sabem que Josef K. está sendo processado. Assim, muitos dos locais que ele frequenta se transformam em alegorias de um tribunal judiciário, como uma espécie de tormenta psicológica. Nada o livra das questões relativas ao tal processo. Nada se esclarece. E o leitor vai junto para o labirinto de enigmas.
Plausível que Kafka, ao valer-se de um enredo absurdo, almejasse retratar a existência dos paradoxos entre liberdade e cerceamento. Na obra, Josef K. sofre os ritos de um processo. Na vida, ainda que não estejamos nas barras da Justiça, há momentos em que nos sentimos como aquele personagem. Livres, mas, ao mesmo tempo, presos, cerceados. Livres, mas angustiados por amarras que fogem ao nosso controle.
Por um ângulo mais específico, pode ser que ele alimentasse também o desejo de nos transpor para o sofrimento de um personagem punido por um suposto crime que jamais praticara. Viveríamos, portanto, o drama de Josef K, ou seja, o inconformismo de pagar o terrível preço da injustiça. Imaginem as agruras de um injustiçado qualquer. Basta um simples exercício de empatia.
“O processo” representa leitura para quem não está em busca de fórmulas fáceis e que, muito ao contrário, admira as profundezas a que o ser humano é exposto por obras como as de Kafka.
Ao penetrar as páginas desse romance, teremos a chance de compreender um pouco além os motivos que fizeram Franz Kafka balançar o universo da literatura e se tornar um autor sempre aberto a estudos e interpretações.
Alberto Calixto Mattar Filho escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br).