12 de setembro de 2024
Foto: Reprodução
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO
Há pouco, por estar em São Paulo, tive a oportunidade de assistir a uma peça teatral em que o ator Guilherme Leme Garcia, durante uma hora, apresenta um monólogo dos principais momentos de um grande clássico de Albert Camus, “O estrangeiro”.
Durante a peça, lembrei-me de que o li em duas oportunidades distintas no tempo. A leitura anterior a adaptações de livros para peças e filmes é de indiscutível importância. Um privilégio, acrescento.
Enquanto o ator expressava, com brilhantismo, as reflexões do protagonista do romance, todo aquele texto marcante revivia em mim, o que me causa o desejo de republicar, em síntese, o que já escrevi sobre a obra. Nunca é demais insistir na divulgação da literatura, essa arte tão magnífica.
Albert Camus, o consagrado escritor franco-argelino, nasce em 1913 na pequena Modovi, uma cidade costeira da Argélia, mas adquire nacionalidade também francesa porque a Argélia foi colonizada pela França entre 1830 e 1962. Sua morte se dá de maneira trágica em 1960, num acidente de automóvel, enquanto se dirigia a Paris.
Versátil, escreveu ensaios filosóficos, romances, contos, crônicas, cartas, peças teatrais e textos jornalísticos, gêneros em que expõe toda a profundidade de seu pensamento. A admiração que despertou rendeu-lhe o Prêmio Nobel de literatura em 1957.
Justo por ser tão vasto, Camus demanda estudos. Além do talento inegável, foi uma voz contra o arbítrio e no entorno dos poderes políticos durante boa parte do século XX, tudo em apoio às vítimas do stalinismo, do nazismo, do fascismo. Jamais aderiu, porém, a qualquer filiação ideológica.
Fui feliz então ao decidir reler “O estrangeiro”, um clássico extraordinário. Publicado originalmente no ano de 1942, em apenas 122 páginas, é possível notar, no transcurso do enredo, uma de suas maiores características, o foco no absurdo. O absurdo que está sempre no seio da nossa existência.
Exemplos? O absurdo sobre o qual não temos nenhum controle, a morte. Somos seres finitos e nada mais. Viver para morrer, a única certeza. O absurdo causado por tanto sofrimento durante a vida. O absurdo de uma infinidade de atitudes humanas, inclusive as de cunho religioso e moral, meras ilusões à realidade inescapável do fim inescapável que logo virá para todos.
Apesar da impiedade desses pensamentos que somente a filosofia pode explicar, Camus oferece uma porta de saída, a revolta. Não a revolta tola e inútil, mas a que se transforma em atos conscientes e nos impulsiona, sob limites, ao reparo das injustiças, das infelicidades, das hipocrisias, do arbítrio, da miséria.
A revolta que nos leva, em paradoxo às incertezas e aos absurdos, a buscar a solidariedade e o prazer da vida enquanto possível. A revolta contra o desconhecido e a finitude inclemente, a revolta que nos torna mais humanos. Daí ter escrito, em seus ensaios filosóficos, “O homem revoltado”.
Camus era essencialmente um humanista. Embora avesso a divindades e consciente da morte, nada o fazia desistir da vida. Sua revolta consistia no valor da vida em oposição ao absurdo da morte, esta, como dito, a única certeza que possuímos.
São tais filosofias que dão sustento ao percurso do argelino Mersault, o protagonista de “O estrangeiro”. Mas, no caso, estamos apenas perante um romance, por isso importa conhecer as linhas mestras das ideias filosóficas de Albert Camus.
Mersault é um mero burocrata que vive em Argel durante a metade do século XX que gostava de cumprir a rotina e adorava se entregar aos prazeres que da vida. Eis que um acontecimento surpreendente transforma a sua trajetória: o fato de ter assassinato a tiros um árabe que perseguia não a ele, mas a um de seus amigos, por pendências familiares anteriores.
A ocorrência se deu quando Mersault vagava só por uma praia deserta e se vê obrigado, pelas circunstâncias, a realizar uma ação talvez de legítima defesa, já que o árabe apareceu no local com faca em punho e parecia pretender atacá-lo naquele momento.
De tal episódio em diante, o livro entra na segunda parte, que narra seu período de prisão e julgamento, tudo sob os ritos do nosso conhecido tribunal do júri, com todos os detalhes em comum.
Todavia, mesmo em apuros, o protagonista mantém uma espécie de indiferença pelo próprio destino. Na realidade, sempre evitara polêmicas e jamais havia seguido o caminho das religiões. Um ateu. Aliás, nunca pretendeu se envolver em nada que não fosse viver sob o ritmo que a vida lhe permitia, no gozo dos amores e cumprimento do trabalho. Todo o restante lhe parecia absurdo, fruto de simples convenções humanas.
Mersault representa, portanto, esse estrangeiro que dá título ao livro, talvez no sentido de que os valores das instituições, sobretudo os morais, os legais e os religiosos, lhe eram estranhos ou, no mínimo, não lhe tinham a importância dada pela sociedade e pelo Estado.
Condenado à morte, já que a pena capital integrava o arcabouço legislativo na Argélia daqueles anos, são espetaculares seus diálogos com o capelão que quer visitá-lo antes da consumação do ato derradeiro. Ressurgem também, nestas páginas, seus fluxos de consciência em razão do cárcere.
Refletimos juntos. Dono de comportamento surpreendente, Mersault fomenta a imaginação do leitor, fazendo-o sempre mais imerso na obra.
“O estrangeiro”, literatura genuína que é, demanda, afinal, que o leitor se desvencilhe de verdades preestabelecidas de qualquer natureza para degustar o texto. Obra cáustica.
“Respondi que não acreditava em Deus. Quis saber se tinha certeza disso e eu respondi que não valia a pena fazer-me tal pergunta: parecia-me sem importância.” (pág.116)
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)