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Lembrança de Lolita, um clássico de Nabokov

Por que ‘Lolita’ voltou ao meu foco? É que uma amiga o leu há pouco e ficou bastante, envolvida. Experimentei-o no já distante ano de 2009 e, na época, aqui publiquei um texto, que, posteriormente, incluí na primeira edição de meu livro em 2017.  

             O tempo sempre é capaz de manter um peso enorme em nossas visões sobre muitos aspectos da vida. Não há dúvidas de que, hoje, em dezembro de 2024, eu poderia me sentir mais apto a transmitir o que penso desse grande clássico.  

             Para tanto, o ideal seria relê-lo, já que as releituras de obras marcantes costumam nos oferecer outros ângulos, outras nuances. O fato é que os clássicos são inesgotáveis.  

Nos clássicos, atributos essencialmente humanos como a vida e a morte, as ambições e a generosidade, o prazer e a dor, o amor e o ódio, além de tantos outros, são explorados aos níveis mais profundos, de maneira a capturar a atenção do leitor que se dispõe a penetrar ao máximo o texto.   

 Um dos efeitos da entrega aos clássicos é sentir, no íntimo, o drama alheio. É conhecer e viver outras vidas, outros lugares, costumes, outros tempos, inclusive os tempos subjetivos que se passam apenas nos fluxos de consciência dos personagens. É experimentar a complexidade humana em suas várias faces.  

“Lolita”, do russo Vladimir Nabokov, foi uma obra polêmica. O tema, um homem de meia idade, que nutria obsessão por meninas na faixa dos 11 aos 14 anos, as chamadas ninfetas, jamais deixaria de gerar alvoroços.  

   Nabokov nasceu em São Petersburgo, na Rússia, em 1899, porém, depois de viver em Londres, Berlim e Paris, emigra para os Estados Unidos, em 1940, onde faz brilhante carreira literária como romancista, poeta, crítico e tradutor. Sua morte se dá na Suíça, em 1977.  

   “Lolita”, esse livro que lhe rendeu fama internacional, foi publicado em meados da década de 50, já em terras americanas, não sem que a história narrada sofresse muitas das esperadas resistências dos editores.  

  Pois se não executei a merecida releitura da obra, fui buscar o que o próprio Vladimir Nabokov disse, no posfácio, não só do ato de criar um romance de enredo tão sensível, como também das relutâncias à publicação.   

    Assimilei, em algumas de suas palavras, que ele, como grande escritor, foi tomado por aquela onda de ter que expulsar da imaginação uma ideia que lhe surgia. Convenhamos: jamais seria fácil contar uma história de tal natureza, em razão do risco de repulsas.  

    Mas Nabokov, mesmo em dúvidas de levar a cabo um romance sobre uma relação doentia, cedeu ao impulso, movido por duas qualidades que considero fundamentais para quem deseja escrever: a coragem e o talento.  

   A coragem para enfrentar a possível aversão dos editores e do público. E o talento para construir um enredo inteligente e que fugisse de eventuais rótulos de algo pornográfico, libidinoso, repleto de baixezas, ou coisa que o valha.  

   Nesse sentido, o que escrevi sobre ‘Lolita” em 2009 provável que tivesse a concordância daquele que criou a obra. Não há, como relatei naquele ano, palavras chulas ou descrições de obscenidades. E Nabokov assim o reitera no posfácio do livro.  

    O que existe, em suma, é o relato de um homem enfermo. Um personagem intelectualizado, mas abjeto e plenamente conhecedor das mazelas que o atingiam e, por isso, em condições de narrar as circunstâncias da relação que mantinha com a menina Lolita.  

    Ao molde de uma autobiografia, o protagonista Humbert Humbert (o nome se repete) vai então detalhando tudo que lhe era possível sobre os sentimentos ou sensações que Lolita lhe inspirava, sem jamais deixar de trazer à tona a anomalia de seus desvios sexuais.   

    Humbert Humbert, um homem que reconhece a doença que o acomete, mas que não resiste às tentações que Lolita lhe provoca. Um homem talvez cingido entre a luz da razão e os vícios do flagelo moral e fisiológico de que é vítima.   

      Compreensível que não estivesse reservado um final feliz a uma relação desse teor. Desavenças, paranoia, ciúme e outras adversidades começam a ocorrer e tornam o caso entre ambos ainda mais complexo.  

       “Lolita” é obra para muitas teses ou análises. O que me parece inegável, contudo, é a absoluta capacidade de Vladimir Nabokov em expor uma relação tão impactante com tamanha lucidez, tamanho equilíbrio.  

        É preciso, todavia, destacar que, no posfácio, ele rechaça qualquer opinião precipitada a respeito de ter escrito sobre um sujeito com ímpetos totalmente anormais. Trata-se somente de imaginação, de necessidade de criar, de prazer estético.  

                         “Para mim, um romance só existe na medida em que me proporciona o que chamarei, grosso modo, de volúpia estética, isto é, um estado de espírito ligado, não sei como nem onde, a outros estados de espírito em que a arte constitui a norma.” 

            Acresço. A verdadeira literatura jamais se esvai das possibilidades que a vida nos apresenta. Sejam boas, sejam ruins.  Sejam dignas, sejam chocantes.  

 Alberto Calixto Mattar Filho escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br) 

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