Casar ou ser freira? A questão, hoje impensável, definia o destino das adolescentes brasileiras nas décadas de 1940 e 1950. Maria Valéria, nascida em 1942, observava outras mulheres da família, que se casavam e viviam felizes para sempre cuidando dos filhos e da casa. Era a mais velha de seis irmãos (cinco mulheres) e, naquela idade, já vivera a experiência. “Eu já tinha cuidado de muitas crianças, não queria viver fazendo isso. Queria ser livre, viajar pelo mundo.”
Mas, ser freira? A família era católica, mas também era uma família de artistas e escritores. Maria Valéria, leitora voraz, tinha formação musical, desenhava, pintava, escrevia. Desde a infância, acompanhava o pai, médico, em visitas a comunidades pobres. Enquanto ele atendia, ela lia histórias para as crianças analfabetas. Ali começava a nascer a educadora que dedicou a vida inteira a levar a educação aonde ela não existia.
Maria Valéria admirava as freiras da escola onde estudava, em São Paulo, que faziam trabalho de alfabetização em comunidades isoladas do litoral do estado, viajando em lombo de burro. Passou a participar das caravanas, e aos poucos tomou gosto. Na década de 1960, começou a trabalhar com educação popular, na periferia de São Paulo, depois de graduar-se em Pedagogia pela PUC e em Língua e Literatura Francesas na França. Foi assim que, aos 23 anos, entrou para a Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, e tornou-se freira missionária.
Depois de São Paulo, Maria Valéria viveu no meio rural de Pernambuco e Paraíba entre 1972 e 1988, quando se estabeleceu em João Pessoa, onde vive até hoje. Enfrentou tempos difíceis. Fiel à Teologia da Libertação, corrente da Igreja que defende a opção pelos pobres, ela atendeu comunidades no meio do sertão, levando a educação e a alfabetização em programas guiados pelo método de Paulo Freire, educador expulso do Brasil pela Ditadura Militar justamente pelo sucesso de sua filosofia. A coragem de Maria Valéria a levou a atuar contra a Ditadura e encarar suas ameaças. Sem entrar na clandestinidade, várias vezes escapou por pouco de ser presa.
Como educadora, deu “três voltas ao mundo”, como costuma dizer, “sem pagar nada”, sempre para atender a chamados do trabalho. Ela passou por vários países da África e América Latina, inclusive Cuba, logo após a revolução, quando atuou em programas de formação de educadores. Trabalhou em países como Timor Leste, Argélia, China e Nicarágua. Sua experiência de vida a leva a carregar dentro de si um mundo vasto demais para ser descrito em poucas linhas. Aliás, foi este o título – “Vasto mundo” – de seu primeiro livro, publicado quando ela tinha 60 anos.
No último domingo, 8/12, Maria Valéria Rezende completou 82 anos, depois de publicar mais de 20 livros, entre romances, contos, poesia e infanto-juvenis, vários deles lançados também no exterior. Este ano, lançou “Patrícia Galvão: Pagu, militante e irredutível”, sobre a escritora e jornalista, figura importante do Modernismo, que ela conheceu ainda na infância.
Tenho muitos motivos para admirá-la, e pelo menos um para gostar muito dela: Maria Valéria é minha prima. Explico. Nascida em Santos, tem raízes em Passos, onde nasceu seu avô materno, Elpídio Lemos de Vasconcelos. Ele era primo em primeiro grau de meu avô, Francisco Gomes de Vasconcelos, e muito próximo da família. Vivendo em Belo Horizonte, Elpídio hospedou minha mãe, Maria Gomes de Vasconcelos, durante o período em que ela estudou pedagogia. Depois de casada, sempre que ia à capital mineira ela o visitava e me levava. Eu, ainda criança, gostava de conversar com ele e sentir o cheiro de tinta de seu atelier.
Com essas lembranças nítidas, fiquei surpreso quando conheci Maria Valéria Rezende e soube quem ela era. Eu me lembrava de sua mãe, Cecy, com quem falei por telefone poucos anos antes de sua morte, ocorrida em 2011. Eu queria saber de sua convivência com minha mãe, que daria nome a um Centro Municipal de Educação Infantil (Cemei) recém-construído pela Prefeitura de Passos, e eu preparava um texto sobre ela.
Foi a literatura que me levou a Maria Valéria, que além de grande escritora é também uma pessoa prestativa e agregadora, sempre disposta a ajudar quem quer que seja. Ela foi a principal mentora do grupo Mulherio das Letras, que começou a se formar na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2016 para fortalecer a voz feminina, e hoje reúne mais de 5 mil escritoras de todo o Brasil. Como o grupo é heterogêneo, alguém perguntou: será que vai dar certo? “Mesmo que tudo dê errado, já deu tudo certo”, respondeu Valéria. A frase se tornou título de um documentário reverente, dirigido por Laís Chaffe, disponível no YouTube e outros streamings.
Maria Valéria Rezende é uma luz numa cena literária padronizada, contaminada por clichês, pelo identitarismo e pelo etarismo. Os mais importantes temas da atualidade estão presentes em seus livros, mas sem sectarismos. Em 2015, ela obteve duas vezes o prêmio Jabuti pela obra “Quarenta dias”, melhor romance e Livro do Ano. Voltou a vencer em 2016, com “Outros cantos”, romance inspirado em seu trabalho no sertão nordestino. Valéria diz que seus livros são frutos de uma mistura de criação e memória, mas não são autobiográficos. Ela critica o persistente modismo da autoficção na literatura brasileira, estilo que, segundo ela, reproduz confissões feitas em divãs de psicanalistas. Maria Valéria nunca teve tempo para divãs.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna.