Opinião

Hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado

29 de maio de 2025

Foto: Reprodução

Há pouco, li uma análise sobre uma obra chamada “Hospício é Deus”, de Maura Lopes Cançado, que me despertou o desejo de conhecer. O título já é instigante.

O livro aborda os diários de internação da autora durante cinco meses em um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro, no final de 1959, uma das muitas internações de Maura. Eram tempos de hospitais psiquiátricos, os manicômios.

Curioso pelo fato, fui pesquisar sobre a autora. Ela foi uma criança superdotada que aprendeu a ler sozinha aos cinco anos, chegou a pilotar um pequeno avião na adolescência e se casou com apenas 15 de idade. O casamento lhe trouxe um único filho e logo se rompeu.

Nascida no ano de 1929, em São Gonçalo do Abaeté, Minas, morre em dezembro de 1993, após um infarto, no Rio de Janeiro. De família tradicional, o pai era um rico e temido fazendeiro da região, enquanto a mãe possuía parentesco com pessoas poderosas do Brasil império de séculos anteriores.

A obra literária de Maura é composta apenas de dois livros. O que ora abordo, “Hospício é Deus”, possui 237 páginas e foi publicado em 1965. “O sofredor do ver”, uma coletânea de contos, veio três anos depois, em 1968.

Na edição da Companhia das letras, após o relato do diário, surgem mais de 20 páginas de ensaios sobre aspectos essenciais da vida e carreira da escritora que precisam ser também lidos para que possamos assimilar algo além dessa pessoa de enorme complexidade.

Por que a complexidade? Porque Maura experimentou dramas absolutamente marcantes durante a existência, como abusos sexuais de empregados da fazenda de seu pai e traumas, por crises de pânico e convulsão, logo na infância. Segundo narra, “o sexo foi despertado em mim com brutalidade”.

Pois dos primeiros tormentos para a juventude e a maturidade, os problemas só vão se ampliando, quando então se separa da família, do casamento precoce e do filho, para viver algum tempo em Belo Horizonte e, em seguida, no Rio de Janeiro, a fim de se tornar escritora.

Já no Rio, leva vida boêmia e dissipa os valores financeiros, mas passa a escrever nos famosos O Jornal do Brasil e O Correio da Manhã. Ali, naquele meio, obtém apoio de nomes de peso da literatura e da imprensa, como Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar e Carlos Heitor Cony, que reconheciam seu talento e inteligência.

Mulher libertária para os padrões da sociedade, ela sempre oscilava os estados de ânimo entre o impulso da escrita e os picos depressivos e de dificuldades de se relacionamento. Parece que nada podia satisfazê-la. Intensa sua inadaptação aos padrões de convívio. Intenso o potencial suicida.

Assim, na medida em que vamos prosseguindo, começamos a perceber que, desde os tempos de São Gonçalo do Abaeté, a origem de seus desajustes talvez resultasse dos sentimentos conflitantes em relação ao pai. Ou de absoluta admiração pela força, ou de grande temor, o que a levou a nutrir a mesma dubiedade perante Deus. Ora o reverenciava, ora o temia pelos castigos que pudesse impor a quem cometesse pecados.

Eis as causas do título. Se o pai lhe era um Deus, também não deixava de ser um homem violento que punia a quem o contrariasse, como ela mesma testemunhou. E se o hospício poderia ser a cura dos problemas que enfrentava, poderia ser também o próprio inferno, o que, de fato, acontece.

O hospício, fosse qual fosse em que estivesse, era, portanto, a face cruel de Deus, o Deus temido, o Deus poderoso, mas implacável no castigo. O Deus metáfora da punição aos infiéis.

É o momento em que o diário revela toda a crueldade dos eletrochoques que se usavam contra as internas, além dos instantes de espancamento e do descaso e frieza de médicos e enfermeiras. Até os psiquiatras eram relapsos. Poucos se salvavam, e ela passa a desejar obsessivamente o que a tratava com bastante compreensão e tolerância.

Muito há de ser dito sobre “Hospício é Deus”, uma leitura densa e que provoca o leitor, de modo a despertá-lo para a evolução das maneiras de tratar os males de origem mental ou emocional, que décadas atrás, seguiam a trilha da estupidez de métodos que não mais se admitem.

Por um viés, uma obra que nos induz a questionamentos sobre as linhas muitas vezes frágeis entre a sanidade e a perda do juízo. Por outro, a compreender as intercessões entre literatura e psicanálise. Talvez entre literatura e psiquiatria, segundo ensaio de Ronaldo Bressane.

No caso específico da autora, como um esquizofrênico, um psicopata ou um louco mesmo, no sentido mais comum, poderia relatar com tamanha lucidez, sensibilidade e consciência tudo que lhe foi possível testemunhar durante a internação em hospícios? Como um desequilibrado conseguiria manter a coerência da escrita?

Na verdade, para Maura Lopes, escrever era uma espécie de salvação. Um ato de plena necessidade, de coragem e de revelações que ela queria expor ao público sobre o que havia vivenciado nos infernos das antigas casas de saúde em que esteve.

“Hospício é Deus” se enquadra na literatura de testemunho. Maura fala realmente daquilo que lhe ocorreu. Porém, não deixa jamais a imaginação de lado. Pessoa e personagem se interpenetram. Denúncia e prováveis instantes de ficção chegam a conviver.

Um texto sobre fatos, mas que abre flancos para compreendê-lo como espécie de romance. “Uma escrita fronteiriça”, a que ultrapassa os limites do registro autobiográfico, aponta Ronaldo Bressane.

Maura Lopes Cançado merece ser lida, estudada, redescoberta. Experimentem-na e o sentirão por si próprios.

    Alberto Calixto Mattar Filho escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br) e é autor de dois livros de resenhas literárias, Livros e Livros, volume 2.