Opinião

Função de juiz é julgar com competência e lisura e não cantar no palco

3 de junho de 2025

Não é preciso ser nenhum jurista com “notável saber” (nem mesmo saber nível Toffoli), ou jurisconsulto com especialização em casos de conflito de interesse: basta ter um mínimo de senso comum para responder à pergunta apresentada a seguir. “É certo ou é errado o presidente do Supremo Tribunal Federal deste país, ministro Luís Roberto Barroso, aparecer em público, com um microfone na mão, cantando musiquinhas e se balançando ao lado do presidente de uma empresa multinacional que tem causas ora sob a apreciação do STF?”.

É óbvio que está errado. Está tão errado que não passa pela cabeça de nenhum magistrado de corte superior, em nenhum país sério do mundo, fazer um número desses. É típico de Justiça estilo Idi Amin, ou coisa que o valha – algo particularmente feio quando se leva em conta que o ministro Barroso é a nossa autoridade-residente em questões civilizatórias. (Ele atribui ao STF a “recivilização” do Brasil.) Mas em vez de ficar com vergonha do que fez, o ministro ficou indignado com as críticas que recebeu.

É mais uma evidência solar de que o Brasil de hoje vive, realmente, no avesso do avesso do avesso. “No Brasil existem duas grandes categorias de pessoas, as que fazem alguma coisa e as que têm razão”, disse Barroso. O ministro se inclui entre as pessoas que “fazem alguma coisa”; os que “têm razão” são os que, no seu entendimento, “precisam vender jornal falando bobagem”. Cantar no festim da iFood, a empresa em questão, é bom. Dizer que isso é um disparate é ruim.

O ministro Barroso sem dúvida faz “alguma coisa”. Na verdade, faz muita coisa; o problema, aí, é que faz muita coisa errada. Na verdade, tem feito uma alarmante quantidade de coisas erradas para um presidente de STF. Para ficar num tema só, tem sido um conflito de interesses ambulante; é um dos “top” três, ou ainda menos, nos infames “eventos” de empresários com questões em andamento no STF – regabofes em Nova York, Londres ou Lisboa, com palestras dos ministros em português, para brasileiros, sobre assuntos brasileiros.

É incesto jurídico em plena luz do sol. Juízes, muito simplesmente, não podem viver aos abraços com pessoas que têm causas a serem julgadas por eles – é uma das mais óbvias “coisas que não se faz”, pelo menos em países onde a Justiça funciona com algum tipo de senso moral. No caso dessa última cantoria, Barroso estava num “evento” do iFood – que no momento discute no STF se deve registrar em carteira os seus entregadores, ou tratá-los como prestadores de serviço.

A empresa tem razão; por sinal, os próprios motoboys concordam com ela, e não querem ter registro nenhum. Mas o problema não é quem está certo ou errado, e sim a moralidade do processo judicial. Juiz é juiz, advogado é advogado, promotor é promotor – e litigante é litigante. Se o magistrado se mistura com eles, é inevitável que a imparcialidade do juízo entre automaticamente em dúvida.

Assim como as emendas costumam sair pior que os sonetos, as desculpas ruins só pioram as culpas. Barroso ficou especialmente irritado com as críticas porque, segundo afirmou, o “evento” do iFood era uma “ação afirmativa” em favor da “cultura” – o tipo da coisa feita sob medida para empresa woke. Mas e daí? A função do STF não é ajudar a “cultura”, seja isso lá o que for, e sim julgar com competência e lisura; a função do juiz não é cantar no palco, e sim falar nos autos. Põe avesso nisso.

J. R. Guzzo é jornalista