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Escrever é o que importa

Foto: Reprodução

ALEXANDRE MARINO

 

Qualquer naco de vida pode ser narrado e, assim, transposto para um texto. A linguagem e a escrita, as duas maiores invenções da humanidade, se unem para tornar eterno o que é efêmero, como todas as vidas são a longo prazo. Talvez seja exagero falar em eternidade, pois nada que é humano é eterno, mas podemos falar em permanência, um conceito que extrapola nossos horizontes.

Por esta e outras razões inumeráveis, penso que todas as pessoas deveriam se empenhar em escrever um diário, com propósitos, em princípio, pessoais. Não só para registrar suas impressões sobre os pequenos acontecimentos do dia ou contar a si mesma sua história, mas para interpretá-la, dar-lhe uma ordem, organizar os pensamentos e refletir e, dessa forma, projetar o que vem depois. Quando se escreve, o pensamento deixa de voar loucamente de uma ideia a outra e se acalma, entra nos eixos. Conexões são estabelecidas e novas descobertas são feitas. Os grandes ou pequenos momentos da vida são avaliados com mais segurança. Tudo se torna mais claro quando se escreve um comentário na intimidade de um caderno que é apenas seu.

Em agosto de 1960, Carolina Maria de Jesus, negra, catadora de papel, pobre, moradora da favela do Canindé de São Paulo, precariamente alfabetizada, lançou o livro “Quarto de despejo”, fruto de sua necessidade interior de escrever sobre o ambiente em que vivia. Naquele momento ela acrescentou o adjetivo “escritora” a seu perfil pessoal. O livro, assim como outros que ela publicou depois, é um importante documento sobre a realidade social brasileira daquela época e que permanece até hoje: a gigantesca desigualdade, a miséria, o racismo, a educação deficiente, o subemprego. Seus livros são hoje objetos de pesquisas em universidades, inclusive do exterior.

Isso não significa que todas as narrativas pessoais alçarão voo em direção aos leitores. Mas se nossos antepassados tivessem enchido cadernos com relatos e reflexões sobre suas vidas, teríamos material de grande riqueza para melhor compreender nossas origens. Por mais banais que fossem suas histórias, teríamos uma visão mais concreta de sua atuação em sua época e no mundo, e essa visão se estenderia além das histórias pessoais para avançar sobre um tempo e a comunidade ao redor. Mesmo que nos deparássemos com personalidades de que os descendentes não devessem se orgulhar, teríamos algum retrato, manchado que fosse, de seres humanos. Todas as vidas emanam algum valor.

Qual foi a grande experiência do dia de hoje? O canto de um pássaro? A visão da lua cheia? Uma notícia que chegou? Uma canção que o rádio tocou? O sorriso de alguém? Ou o choro? Um aborrecimento? A escrita pode alterar a ordem de importância dos acontecimentos, jogando lá para baixo na hierarquia das lembranças uma experiência desagradável que ficaria injetando energia ruim em nosso pensamento. E a descrição por escrito da emoção provocada por um inesquecível pôr do sol, contemplado às margens de um mar quase inacreditável, dará mais vida a um possível registro fotográfico.

Se uma rajada de vento repentina assanha os cabelos de uma pessoa que caminha pela rua, será apenas um vento que passou e se perdeu. Mas se a pessoa descreve nos versos de um poema aquela insignificante experiência, terá eternizado o vento. Cada momento merece algumas linhas de texto, uma reflexão, um poema. A vida nos faz testemunhas de belezas e terrores, e nossa sensibilidade deve ficar aguçada para que não deixemos de nos espantar a cada estímulo. O registro por escrito torna mais viva qualquer experiência.

Se o registro escrito engrandece os fatos minúsculos, o que se pode dizer dos episódios marcantes de nossas vidas? De repente, chega o momento de uma grande virada. Para enfrentar o choque é preciso parar, por um minuto ou um dia que seja, sabendo que daqui a muito tempo aquele evento terá sido a principal referência de um determinado período da vida. O que aconteceu de importante em 2024? E o nosso personagem se lembrará imediatamente daquele episódio fundamental, que ficou registrado no calendário, que o rejuvenesceu, que lhe deu a sensação de renascer, multiplicou suas energias.

Escrever a respeito tornará o episódio ainda mais palpável e mais vivo. Depois de publicar oito livros de poemas, lapidados como joias na busca de minha melhor expressão, posso dizer que a poesia fortalece e aprofunda minha experiência de viver. A mutação da vivência em poesia é o diálogo que estabeleço com o mundo. Lembrando que a poesia é feita de palavras, e a palavra, ao se transmudar em linguagem, torna concreto o que é abstrato e abstrato o que é concreto. As palavras estão aí para dar um sentido à nossa vida.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna

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