Opinião

Entre escombros

18 de março de 2025

Foto: Reprodução

ALEXANDRE MARINO

Entro pelo portão à direita, porque se subir a escada do sobrado vou dar em lugar algum: a sala que dava passagem para um século de história de uma família se transformou num abismo. O portão dá passagem para um corredor revestido com cacos de cerâmica, com quatro degraus irregulares, que é uma trilha entre ruínas. Ia dar no quintal, já de frente para a casa do fundo, mas isso é um quintal? Parece mais o que sobrou de um furacão, ou as ruínas de uma cidade bombardeada. Da casa dos fundos restam uma escada solitária por onde se chegava a um alpendre, algumas paredes pela metade, um vão onde existiu uma porta.

Aquele portão à direita do sobrado, que tantas vezes tive de pular de madrugada, quando ao chegar da balada percebia que tinha esquecido a chave, está enferrujado e nem se tranca mais. Logo será retirado e se juntará ao entulho. Na metade do caminho entre a rua e os restos do quintal, uma porta à esquerda dá acesso ao porão do sobrado e ao fundo do Bazar Magom, que meus pais criaram nos anos 1950 e foi fechado depois que eu e meus irmãos fomos embora de Passos. O bazar vende material escolar, presentes para casamento e artigos religiosos. Ali também só restam escombros, mas posso ver, no porão, meu pai trabalhando numa serrinha tico-tico, que ele e minha mãe usavam para cortar madeira e fazer peças artesanais que vendiam no bazar. Minha mãe, professora de desenho no Colégio Estadual, decorava as peças com desenhos feitos com pirógrafo. Sinto o cheiro de madeira queimada enquanto a vejo desenhar.

Volto às ruínas do quintal e me dirijo à escada que dá acesso ao sobrado. No alpendre, que chamávamos de terracinho, meu avô está sentado, ao lado de minha avó, no velho banco que ele mesmo construiu. Acaba de chegar da missa das 9 horas na igreja de Santo Antônio, que também não existe mais. “Hora do cinema!”, exclama, e tia Raquelina traz uma cerveja Malzbier e um queijo. É seu programa dominical, tão religioso quanto a missa.

Tia Raquelina se foi poucos anos depois que me mudei de Belo Horizonte para Brasília, levada por um câncer. Não fosse a doença, estaria sentada, tomando sol, ao lado de Tia Rosária e Tia Lourdes, na muretinha que separava a parte gramada da parte ladrilhada do quintal. Tio Vasconcelos e Tia Elza passavam por elas com um aceno e voltavam para casa, depois de tomar um café. Havia um portãozinho no muro entre os dois terrenos, e assim não precisavam ir pela rua. Pelo portãozinho passávamos para o lado de lá, quando era tempo de jaboticabas e nós e nossos primos nos esbaldávamos com a fruta mais deliciosa que a natureza já produziu. Mas nada resta da velha árvore, e em pouco tempo nem restará a memória do sabor da fruta.

Tia Nezita reza em seu quarto, o único que tem uma janela que dá para o que restou do quintal. Ela morreu de infarto em 1999, mas ainda insiste em permanecer ali. De sua janela ela deve ter me visto passar tarde da noite, quando aproveitei que meus pais e meus irmãos haviam viajado e levei minha namorada para alguns momentos de solidão a dois na casa dos fundos, onde morávamos. Tia Nezita sofria de insônia e qualquer ruído no silêncio noturno a levava à janela. Naquela noite ela deve ter preferido fingir que dormia.

Enquanto caminho no quintal com cuidado para não tropeçar nos entulhos, minha mãe desce as escadas da casa dos fundos e sobe as do sobrado. Ela fazia esse percurso várias vezes ao dia. Antes de se aposentar como professora ela passava muito tempo fora de casa, e minhas tias cuidavam dos afazeres domésticos a que ela não podia se dedicar. Era como se as duas casas fossem uma só, e ambas um pedaço de meu corpo e de minha alma.

Meu pai, radiotelegrafista, uma profissão que não existe mais, cumpre seus horários para transmitir e receber mensagens por código morse e cuida do Bazar, junto com Tia Nezita, que atende os fregueses e, na ausência deles, faz bordados sentada num canto da loja. Meu pai abaixa a cabeça para passar por uma portinha entre o porão e o quintal, e encontra nosso cachorrinho Pequi, que ainda caminha por ali, sem entender nada. Desde filhote, quando o ganhamos do Seu Darci da Casa Capitólio, até morrer de velho, ele sempre viveu naquele quintal. Tia Rosária reclamava dele e não gostava que se aproximasse, mas o alimentava fielmente com restos do almoço e jantar, como uma tutora zelosa.

Dentro do sobrado, o mundo que vejo é o mesmo. O relógio da sala está parado às 16 horas, horário exato da morte do meu avô. Minha avó, que sofreu de Alzheimer por muito tempo, resmunga lamentos enquanto caminha do quarto para a cozinha. Minhas tias preparam pão de queijo e outros quitutes que eu adorava, como os biscoitinhos de soda. Do alto de minhas quase sete décadas de vida, estou perdido naquele ambiente que sempre me será de enorme intimidade. O telhado desapareceu e bate um sol forte na tarde de Passos. As paredes também desapareceram. Meus avós, minhas tias, minha mãe, meu pai, todos desapareceram. O sobrado desapareceu; a casa dos fundos, onde passei a infância, desapareceu. A casa do Tio, vizinha à nossa, desapareceu. Passos desapareceu, assim como a memória e a identidade da cidade que eu amava, devoradas por um monstro arquiteto de dinheiro e misérias. E eu não me vejo no espelho da penteadeira, entre as camas que permanecem no quarto tantos anos depois da morte de todos.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF