ALEXANDRE MARINO
Todos os brasileiros conhecem, ou deveriam conhecer, a história contada pelo filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, que dirigiu algumas das mais premiadas produções do cinema brasileiro, como “Central do Brasil” (1998) e “Diários de Motocicleta” (2004). O filme acaba de estrear nos cinemas, e já bateu vários recordes de público e bilheteria. Selton Mello e Fernanda Torres são os protagonistas, nos papeis de Rubens Paiva e sua esposa, Eunice Paiva. O filme é inspirado no livro de mesmo título, de Marcelo Rubens Paiva, filho mais novo do casal, publicado em 2015. Filme e livro desnudam a história de um dos piores crimes cometidos pela ditadura militar que sufocou o país durante vinte anos.
“Ainda estou aqui” já mereceria ser visto por ser uma das melhores produções do nosso cinema. Como trata de um fato histórico, ver o filme sabendo o que acontece no início, no meio e no fim é irrelevante. Portanto, pode-se comentá-lo com certa liberdade, pois no final das contas seremos sempre surpreendidos, graças a seu poder de emocionar e levar à revolta qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade. No entanto, é bom lembrar que esta crônica vai discorrer sobre o filme e pode quebrar um pouco da surpresa de quem não conhece a história a fundo.
Rubens Paiva foi assassinado em 1971, mas a ditadura manteve familiares e amigos sob tortura psicológica ao longo de décadas, já que os governos militares jamais admitiram sua prisão e muito menos sua morte. Sequestrado de sua casa por agentes do Exército, armados e não identificados, foi levado para um quartel, torturado e morto. Seu corpo, depois de enterrado e desenterrado duas vezes, foi atirado ao mar, como os militares costumavam fazer com aqueles que morriam nas sessões de tortura. Somente em 2014 a história foi esclarecida, e os militares envolvidos na tortura e assassinato foram denunciados à Comissão Nacional da Verdade por um oficial da Aeronáutica, mas nunca houve qualquer punição.
Rubens Paiva era deputado federal e foi cassado pela ditadura em 1964. Passou nove meses exilado na Europa, mas voltou ao Brasil inesperadamente e levou a família de São Paulo para o Rio de Janeiro, onde retomou suas atividades como engenheiro civil. Nesse ponto começa o filme, que mostra uma família feliz de classe média, vivendo com seus pequenos problemas e suas diversões, na praia, nas festas, com os amigos, enquanto em segundo plano se percebe um crescente clima de tensão pela presença ostensiva do Exército na cidade, pelas blitzes no trânsito, pelo tráfego de veículos militares e a vigia da casa por desconhecidos.
O filme é fundamental não só pela homenagem a Rubens Paiva e sua família, mas por suscitar reflexões necessárias em momento muito grave da História do Brasil, com o ressurgimento do extremismo de direita e a crença de que qualquer oposição deve ser tratada com violência. A ditadura militar fugiu totalmente de qualquer legalidade, como bem mostra o filme, e incumbiu funcionários públicos pagos com dinheiro do contribuinte de prender, torturar e assassinar brasileiros. Os militares não exerceram um governo, mas o sequestro de um país. Depois de 20 anos, quando teve início a redemocratização, o Brasil era um país falido, com as políticas sociais destruídas, a economia arruinada, inflação galopante, desigualdades agravadas e centenas de famílias enlutadas.
“Ainda estou aqui” tem uma atuação brilhante de Fernanda Torres e uma produção perfeita em seus mínimos detalhes, na reconstituição de época, nas cenas de rua, no interior das casas, nos objetos pessoais, móveis, utensílios, na trilha sonora, na direção de atores, na fotografia. O filme mostra o terror com sutileza – não há cenas explícitas de violência ou tortura, mas o clima é sentido na presença ameaçadora do Exército nas ruas, no ambiente sombrio do quartel, nos gritos dos torturados, nas prisões, na ação de agentes das Forças Armadas, quase sempre à paisana e armados. Pode-se medir o sofrimento da família até mesmo quando Eunice e os filhos, ao finalmente obterem o atestado de óbito de Rubens, 25 anos depois da morte, encontram aí um motivo para comemoração.
A Câmara dos Deputados restituiu simbolicamente o mandato a Rubens Paiva em 2014, quando seu busto foi instalado no hall da Taquigrafia da casa. Em 8 de janeiro de 2023, o busto passou ileso pela horda de extremistas que invadiram o Congresso e quebraram tudo o que viram pela frente. Eram indivíduos que pediam uma intervenção militar e instauração de um regime fechado aos moldes da ditadura que assassinou Rubens Paiva e tantos outros brasileiros.
Eunice morreu aos 89 anos, vítima de Alzheimer. Nas cenas finais do filme, Fernanda Torres é substituída por sua mãe, Fernanda Montenegro, outra grande atriz do cinema e do teatro brasileiros. Em poucos minutos, Fernanda mãe rouba a cena, ao representar Eunice já doente, com o olhar fixo e perdido. Diante de uma reportagem sobre os anos da ditadura e a morte de Rubens, o Alzheimer parece ceder e os olhos de Eunice se movimentam em direção à televisão.
Quem sabe o filme de Walter Salles possa ter o mesmo efeito sobre o Brasil, um país que também sofre de Alzheimer e parece ter perdido a memória de tempos tão sombrios, a ponto de ainda permanecerem por aqui alguns brasileiros que se manifestam a favor da ditadura enquanto outros – inclusive um ex-presidente – idolatram torturadores?
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna.