Os corpos esquálidos das crianças yanomami, que usam suas últimas energias para manter um resto de vida, estão falando conosco, e tentam passar pela barreira de nossos olhos vidrados para buscar em nossos cérebros e corações um recanto de aconchego e acolhimento. Para que aprendamos com eles, tomemos um choque de humanidade para o qual não estamos preparados, tiveram que chegar perigosamente às margens de suas próprias vidas, tiveram que romper a harmonia de seu universo para mergulhar nos fluidos venenosos de nosso mundo em desequilíbrio. E fomos nós, pobres civilizados, que os trouxemos para o lado de cá dessa fronteira.
É preciso ouvir os yanomami, e para ouvi-los é preciso falar muito sobre eles, é preciso vê-los com os olhos limpos das manchas que impusemos ao mundo, a todos os mundos. Temos muito o que aprender com aquelas crianças, com aquelas mulheres massacradas pelo mercúrio, que amamentam seus filhos com o veneno produzido pelas mãos que tentam retirar de águas agora fétidas a miséria travestida em efêmera riqueza. Temos muito que aprender com as centenas de crianças assassinadas e as inúmeras que ainda aguardam o momento de morrer.
É preciso aprender com os yanomami, para que o sacrifício não tenha sido em vão, é preciso que compreendamos a sua sabedoria e seu conhecimento, e tenhamos a humildade de perceber o quanto somos mesquinhos diante de sua grandeza, a grandeza de um povo que criou um modo de vida que dá certo há séculos, há milênios, ao contrário de nossa civilização predadora, agressiva, destruidora e violenta, que envenena a água que bebe e o alimento que consome, empesta o ar que respira, arranca o coração da terra que a acolhe e quebra a harmonia dos sons e dos silêncios ao redor com suas bombas assassinas.
Ao contrário dos yanomami, nós somos uma civilização sem identidade. Imaginamos que a terra é nossa, que os rios são nossos, que as montanhas e as entranhas da terra são nossas, mas somos pobres apátridas perdidos, estamos perdidos há quinhentos anos, desde que os invasores aqui aportaram, implantaram a escravidão, retiraram a riqueza, as árvores, os animais, e aqui se estabeleceram para prosseguir o massacre. Nós somos o fruto do saque. Nós e nossas cidades caóticas, e nossas favelas, e nossas rodovias, e nossos presídios abarrotados, e nossas hidrelétricas, e nossos carros de luxo presos em engarrafamentos, e nossas crateras abertas pelas mineradoras, e nossos rios mortos, e nossos pastos e seus bois depressivos, e nossa soja coberta por uma nuvem de agrotóxicos. Temos muito a aprender com os yanomami, seres da natureza, que compreendem a linguagem dos ventos e dos animais, ouvem o recado das flores, dialogam com os rios e com a terra, manejam seu alimento e seus medicamentos sem agredir a floresta e sem envenenar seus próprios corpos.
Aílton Krenak, que não é yanomami mas é filho do povo Krenak, nascido em Minas Gerais às margens do Rio Doce, doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos mais respeitáveis pensadores da causa indígena, disse sobre a luta que é de todos os povos originários: "Nós estamos resistindo há 500 anos, o que me preocupa é se a civilização branca terá capacidade de resistir." Não precisamos pensar muito para perceber em que nos transformamos em nossa caótica busca do que não sabemos. Uma civilização abrutalhada, que devora a si mesma, que não consegue compreender o próprio sentido da palavra civilização, que não aprende com o passado e não acredita no futuro, que pensa que viver é andar num trem descarrilhado em alta velocidade, que viver em comunidade é destruir o patrimônio público, é destruir a História, é gritar palavras de ordem a favor do caos e da opressão.
O que o colonizador fez há 500 anos é o que neocolonizador continua fazendo hoje da mesma forma: invade territórios, depreda a natureza, escava a terra, cria desertos e nada deixa no lugar a não ser devastação e miséria. É isso que as mineradoras fazem em Minas Gerais, é isso que o agronegócio faz na Amazônia e no cerrado, é isso que o tráfico de drogas, o garimpo e as madeireiras, sob o comando de grandes empresários, fazem na Amazônia. Quanto vale esse ouro manchado de sangue?
Somos uma civilização selvagem e primitiva, iludida pelos presentinhos dos opressores, pelos anéis e brincos vendidos nas joalherias por uma fortuna. Como disse Renato Russo, nos deram espelhos e vimos um mundo doente.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna