PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS
Perrengão
Tenho a péssima mania de querer ser a Toda-Poderosa.
Experimentei o perrengão numa Semana Santa feliz. Para o estudante que mora longe dos pais, ser paparicado com comida boa é tudo de bom.
Naquela Semana Santa, o paparico veio com um bônus, pois encontrei na geladeira de casa quilos de jabuticabas limpas e geladinhas.
Eu não sei vocês, mas, para mim, comer jabuticaba e não engolir o caroço, é o mesmo que tomar sorvete e não comer a casquinha. Não tem graça nenhuma.
E na quinta-feira acabei com os quilos de jabuticaba assistindo ao programa de televisão “Casos Extraordinários”, tratava-se da clássica história da mulher acidentada pedindo ajuda para os motoristas na rodovia e que no final ela era uma vítima fatal do acidente implorando socorro para os sobreviventes.
Não sei se foi pela jabuticaba fria ou pelo programa de televisão, mas fiquei gelada de medo.
A semana continuou com muita bacalhoada e chocolate. Os caroços de jabuticabas que me trouxeram alegria na quinta-feira, deixaram-me, literalmente, enfezada no domingo.
Até que a Toda-Poderosa, imaginando poder controlar tudo ingeriu quarenta gotas de laxante no domingo.
Ficaria tudo bem, se eu não tivesse que pegar um ônibus à noite para retornar para Belo Horizonte. O ônibus era um “Veículo Extra” colocado para responder às altas demandas do feriado santo, e não havia banheiro, ar-condicionado e nem divisão entre a cabine do motorista e os passageiros.
Até Piumhi foi tudo muito bem, até sorri para o meu novo parceiro de viagem, recém embarcado. Mas foi a conta de sair do trevo, um suor frio empapou a gola da camiseta. Fiz respiração cachorrinho, endureci o corpo, mas nada, nada, amenizava a cólica.
Pedi licença ao meu vizinho de poltrona, aproximei-me e sussurrei para o motorista: “Moço, estou passando muito mal, por favor, pare num posto de gasolina”.
A resposta do homem acordou um terço do ônibus:“Menina, não temos posto de gasolina nos próximos vinte quilômetros, se quiser paro na estrada”.
Voltei sem gracinha para o meu lugar, com a expectativa de aguentar os vinte quilômetros, não suportei nem quinhentos metros. Pedi licença novamente ao meu vizinho de poltrona e falei ainda mais baixo para o condutor: “Moço, aceito a segunda opção”.
O ônibus andou mais uns metros e parou, neste momento mais um terço do ônibus acordou com o grito do motorista: “Menina, aqui está bom?”
Desci agarrada com o meu caderno de anatomia, e na beira da estrada eu só via a defunta do acidente pedindo socorro.
Eu tinha duas opções, voltar para o ônibus -e o desfecho seria desastroso – ou enfrentar a defunta mato adentro e resolver o meu problema.
Não fiz nem uma coisa, nem outra. Convicta de que o meu sorriso inicial e os dois pedidos de licença para sair da poltrona já nos tornara íntimos, voltei para o ônibus e solicitei apoio para o meu vizinho de viagem.
O rapaz foi discreto. Acho que, desde o início, percebera a minha inquietação. Ele desceu do ônibus comigo e ficou na beiradinha da rodovia. Entrei no mato até onde a minha coragem permitia, pouco além de onde ele estava.
Quando tudo se resolveu, percebi que todos os passageiros estavam alertas, alguns aboletados nas janelinhas assistindo ao show (o ônibus não tinha ar-condicionado).Outros até desceram para fumar e o motorista meneava a cabeça em sinal de reprovação.
Outra vez me vi diante de um dilema: jogar-me no mato escuro e ser a próxima protagonista de casos extraordinários ou voltar para o ônibus.
Voltei para o veículo, e com toda a arrogância permitida, comecei a cobrar ingresso dos espectadores. É lógico que do meu vizinho de poltrona cobrei o dobro. Afinal, ele assistiu tudo de camarote.
PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS, graduada em odontologia (PUCMG) e direito (Fadipa), mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional (Unifacef- Franca) e Especialista em Direito Público (Faculdade Newton de Paiva), é servidora pública do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. E-mail: acitripa70@ gmail.com