DÉCIO MARTINS CANÇADO
O animal satisfeito dorme
Já diziam os antigos: “A melhor refeição que há, é feijão com fome”. Diversas vezes, presenciei casos em que algo, até mesmo indispensável ou valioso, para a maioria de nós, foi rejeitado por alguém, sem nenhuma cerimônia, sem que ninguém entendesse a razão.
Quase sempre, isso demonstra que uma pessoa, quando se encontra saciada, e podemos dizer em todos os sentidos, tende a acomodar-se, a não buscar novos desafios, novas conquistas, descobertas, enfim, perde a motivação natural do ser humano.
Muitos, também, já ouviram a expressão “cuspir no prato que comeu’, referindo-se a situações em que alguém, depois de usufruir de algum benefício, utilizar-se de algum favor ou vantagem conseguida por outros, nem sequer agradece ou, até mesmo, ignora ou humilha o seu benfeitor.
Há, também, os que se julgam ‘donos da verdade’, que se julgam muito cultos e sábios, e que, em qualquer conversa ou discussão, não aceitam que alguém tenha opinião diferente da sua, que tenham conhecimento maior que o seu sobre determinado assunto. Acomodam-se em sua pequenez, criando um casulo à sua volta, perdendo a incrível oportunidade de aprender, crescer como indivíduo e conseguir ótimas oportunidades na vida.
O que nos impulsiona é “o permanente sentimento de insatisfação em relação às verdades construídas através da história, é a incessante busca por ampliar a compreensão acerca das coisas do mundo. Ao contrário, a satisfação encaminha para a ‘sedução do repouso’, para a tão perigosa zona de conforto.
Por esse motivo, é salutar certa dose de ansiedade, própria ao desconforto de aceitar que sabemos muito menos do que desejamos saber. Isso significa admitir a ignorância sobre diversos assuntos, sofrer por isso e trabalhar para diminuí-la. Esse movimento deve incluir, também, o de se autoconhecer, pois em alguma medida, somos desconhecidos para nós mesmos”.
O exercício dessa dinâmica de buscar continuamente conhecer a si mesmo constrói, gradativamente, “a identidade da pessoa; a ‘impressão digital’ que nos faz únicos. Abrir-se para o novo, pressupõe deparar-se com algo incomum e se dispor a fazer mais perguntas do que formular respostas, o que se contrapõe, em boa parte, à expectativa que se tem em relação à função do professor. Nenhuma outra profissão, além dela, sofre com tamanha intensidade a ilusão de que deve ter mais respostas a dar do que perguntas a fazer”.
Aceitar essa realidade, de que não sabemos tudo, que somos seres ‘aprendentes’, sempre; aceitar passivamente o tamanho da nossa ignorância, vai requerer um exercício de genuína humildade.
“O desapego é o exercício necessário à partilha, capaz de nos distanciar da ilusão que confere ao conhecimento a possibilidade de posse. Bem sabemos que o conhecimento de cada um nada mais é do que um ‘processo’ elaborado por muitas pessoas, um esforço coletivo da humanidade. Seria, no mínimo, ‘ingênuo’ não assumirmos a nossa incompletude e a nossa dependência em relação ao outro.
A ‘vitalidade’ contida na insatisfação habitual traz o sentido da vida em abundância, que não se contém, e, por isso, transborda. A energia destinada para esse fim é visível a ‘olhos nus’ e contagia. São aqueles a quem chamamos de entusiastas, de apaixonados, pessoas que fazem acontecer! A essas pessoas, que acabam entrando para a história, cabe o desbravamento dos novos dias e das novas possibilidades.”
Ao refletirmos sobre isso, não poderíamos deixar de nos lembrar de dois ilustres brasileiros: João Guimarães Rosa, cuja frase de sua autoria intitula este texto; e Oscar Niemeyer, que transpôs os 100 anos com vida, e vida em abundância. Ambos ensinam, por meio de seu legado, que dessa vida nada levamos, senão a vida que levamos, ou melhor, somos o que fazemos e o que fazemos nos transforma.
O percurso, o movimento, o processo constituem a essência desses homens. Essência esta, evidenciada quando Guimarães Rosa, ao romper as fronteiras do sertão, registra: “O que importa não é chegar nem partir, mas a travessia”; ou ainda, quando Niemeyer rompe a rigidez das linhas retas e assume: “Se a reta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é que faz o concreto buscar o infinito”.
Você está satisfeito com o que é, com o que faz? É preciso estar sempre em movimento, sempre buscando novos desafios, para que a vida tenha sentido, verdadeiramente.