ADAÍLTON ALMEIDA DE SOUSA
Reflexos e Reflexões
A mulher respirou lentamente e afastou os cabelos impregnados de suor da fronte, olhou com satisfação para o varal repleto de peças de roupas coloridas e limpas.
Olhou para as mãos, com dedos grossos e unhas curtas, o trabalho doméstico não lhe permitindo vaidades, ainda guardava em segredo no fundo da bolsa um pequeno espelho, mas não se recordava da última vez que o usou.
Queria descansar um pouco, estender as pernas e assistir TV, talvez encontrasse alguma novela que lhe prendesse a atenção, trouxesse algum romance para a sua vida, ainda que artificial, porque a vida tinha desses longos períodos de tédio, anêmicos de emoção, que a embotavam, tirando o rubor da sua face.
Mas reprimiu a ideia, não estava acostumada a se dedicar ao ócio, a pequenos momentos consigo mesma, aliás, tinha um medo incomum de estar na sua própria companhia, como se ao procurar qualquer diálogo, terminasse por descobrir desejos ocultos e adormecidos da mocidade. Então secou as mãos na roupa apressadamente, prendeu o cabelo em um coque e foi ao banheiro lavar o rosto.
A água fria em contato com a face lhe dava uma sensação de renovação, o espelho meio fosco à sua frente era evitado, mas ousou espiá-lo por um instante. Viu um semblante cansado e sério, as marcas da idade em linhas curvas, como fendas em uma terra seca, queimada do sol, os olhos negros como poços secos, porque já não chorava por fora, o choro brotava por dentro, no avesso do corpo, por fora a dureza da vida se encarregara de criar camadas e mais camadas, para torná-la impermeável, numa tentativa desesperada de proteger sua inocência.
Fios brancos destacavam-se entre os negros, sobre sua cabeça. Esquivou rapidamente o olhar para a pia, engoliu em seco, como se engolisse a aridez de um deserto.Ao olhar para baixo, sentiu uma súbita vertigem, talvez fosse fome, resolveu ir até a cozinha comer um pedaço do bolo de fubá que fizera de amanhã.
Durante o caminho até a cozinha, passou pela sala, onde os retratos dos filhos casados giravam como tudo ao seu redor, parou um instante para ver se a tontura passava, fitou o relógio de parede com indignação, já era quase tarde, olhou aquele símbolo do tempo com raiva, ódio do tempo que corria sem avisar, que lhe levara os anos de juventude tão rápido, o tempo que fizera com que os filhos crescessem, com que o marido fosse embora, e no final de tudo ficasse sozinha, queria que o tempo morresse por um instante, o suficiente para que tivesse tempo de se cuidar ou ser cuidada, era como se cada ponteiro do relógio a atravessasse feito lança.
Deixou-se cair numa cadeira da cozinha e fitou a louça por lavar, olhou sem apetite para bolo sobre a mesa, foi então que algo inimaginável aconteceu, o choro adormecido, escondido nas entranhas, veio à tona, lento e depois de forma convulsiva, a mulher abriu a rolha do pranto que desceu como rio caudaloso umedecendo a terra seca, sentiu-se vulnerável, como quem deixa o conforto do útero, para vir ao mundo áspero. A inocência revelada, a denúncia da tristeza, da solidão que guardava no peito.
Quando já saiam as últimas gotas, segurou a ponta do avental para enxugar o rosto, e no silêncio que voltava a se instaurar, ouviu um barulho: três palmas.
Estarreceu-se com a possibilidade de uma visita, de permitir que seu cenário particular fosse invadido por alguém estranho, porque o estranho a retirava da rotina, mas se levantou, espiou por uma fresta da janela para ver quem lhe tirara daquele momento de libertação de águas há tanto represadas. Era um vendedor de tapetes.
No instante em que o homem iniciou o anúncio do produto uma chuva começou a cair, a mulher de certo modo compadeceu-se com o indivíduo e o mandou entrar, não havia nenhuma marquise para que o pobre pudesse se abrigar da chuva. Na sala de estar o homem desculpou-se por eventual incômodo.
A mulher então, sem saber o que dizer, ofereceu-lhe uma xícara de café e um pedaço de bolo. O indivíduo a fitou por um instante. Elogiou o bolo e os seus olhos. Assustou-se com o comentário e sentiu o rubor tingir as faces inusitadamente.
Após a chuva se despedir, o homem também se despediu. A mulher comprou um tapete.
Desde então, quando vê o tapete no varal, sente uma esperança acender dentro de si e já não teme o espelho. Entendeu que os olhos também são o espelho da alma, e neles a beleza se faz refletir.
ADAÍLTON ALMEIDA DE SOUSA, escritor, integra a Associação Cultural dos Escritores de Passos e Região, cujos membros se revezam na autoria de textos desta coluna aos sábados