PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS
Perrenguinho
Tudo o que é ruim de se viver, é bom para contar — disse foi Ariano Suassuna, que complementa exemplificando que se João se reunisse com José por três vezes na mesma semana, e se cada um contasse para o outro apenas coisas admiráveis e maravilhosas sobre a própria vida, nenhum deles suportaria o quarto encontro.
Então, para que suportem os meus textos, hoje contarei a primeira das três experiências não muito agradáveis que vivenciei. Vou chamá-las de perrenguinho, perrengue e perrengão. Aconteceram na infância, na adolescência e na juventude. Vou descrevê-las não necessariamente nesta ordem.
Vamos ao perrenguinho:
Foi a primeira vez que viajei sozinha com a família de uma amiga. O evento era a formatura do irmão dela, alguns anos mais velho do que nós, que se tornaria engenheiro. Fomos para uma minúscula cidade mineira, daquelas em que a vida girava em torno da Universidade.
Só pela profissão escolhida pelo formando, a viagem já valeria a pena. Engenharia (qualquer uma delas) tinha fama de ser um curso com grande desproporção entre homens e mulheres, os rapazes reinavam e a chance de serem bonitos era considerável. De fato, as expectativas se concretizaram.
As comemorações começaram bem cedo na república do formando. Ele convidou vários colegas de sala e professores, sem falar dos amigos de Passos que viajaram para prestigiá-lo.
Tinha, e ainda tem duas classes de pessoas que me encabulam: professores e gente bonita. Perto destas fico gaga, daqueles fico muda. E no churrasco de formatura, as duas categorias de pessoas estavam presentes.
Então, comecei a me sentir desconfortável na festinha, como se eu estivesse almoçando com a realeza britânica.
A república ficava no subsolo de uma casa, em cima morava a proprietária do lugar. Era o único imóvel na rua e não havia nenhum comércio próximo.
O local era típico de estudante, com copos de massas de tomate para beber vinho, tijolos e tábuas servindo de prateleiras para as três panelas da casa e um banheiro em que a porta precária e a janela basculante comunicavam com a varanda na qual estava rolando a festa.
Não me lembro dos detalhes, se foi pela comida, pela bebida ou pela presença dos “príncipes Willians” na festa, o fato é que o meu intestino também começou a se sentir desconfortável e o único banheiro disponível era aquele, no centro da festa.
Comecei a transpirar frio e o vaso sanitário me gritava, eu olhava para o banheiro e via uma cena de filme de terror na minha mente.
Eu me imaginava, após ter o problema resolvido, abrir a porta que não possuía isolamento acústico e ficar frente a frente com os “príncipes britânicos e catedráticos da Harvard” me encarando e dizendo:
— Eu sei o que você fez no verão passado e também sei o que você acabou de fazer agora.
Em respeito aos “príncipes e PHDs” resolvi subir as escadas de dois em dois degraus e pedir ajuda no andar de cima para à locadora da casa. Cheguei a olhar para o matagal ao lado da república, mas ainda existia em mim um lampejo de dignidade.
Apertei a campainha com vontade e escutei uma voz trêmula gritar longe:
—Já vai.
Nessa hora eu parecia uma louca andando e rebolando no alpendre da dona. Nem percebi quando esmurrei a porta da mulher implorando:
— Por favor, abre a porta.
A voz ficou mais próxima, ouvi um chacoalhar de chaveiro e de alguém escolhendo com dificuldade a chave correta, enquanto eu, com medo de a “realeza britânica” ouvisse lá embaixo, pedia num sussurro:
— Pelo amor de Deus, dona. Anda logo.
Até que apareceu na minha frente uma senhorinha com os olhos assustados. O meu rosto de vela escorrida com o olhar de desespero a fizeram se afastar. Aproveitei a brecha e sem a mínima educação e conversa empurrei a mulher do meu caminho e invadi a casa dela à procura de alívio.
Não gastei nem trinta segundos para tudo se resolver, mas fiquei trinta minutos olhando para o espelho e ensaiando a minha saída da casa.
Saí do jeito que entrei, sem falar uma palavra com a senhora. Coloquei no rosto o sorriso do gato Cheschire, fiz o troféu joinha e desapareci escada abaixo.
PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS, graduada em odontologia (PUCMG) e direito (Fadipa), mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional (Unifacef- Franca) e Especialista em Direito Público (Faculdade Newton de Paiva), é servidora pública do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. E-mail: acitripa70@ gmail.com