Dia a dia

Dia a Dia

12 de maio de 2023

ALESSANDRA BORELLI

Estupro virtual

Curioso como os avanços das novas tecnologias tem afetado o comportamento das pessoas que se relacionam por meio delas, de forma afetuosa, amorosa e até sexual. Uma recente pesquisa do Pew Research Center, realizada nos Estados Unidos, mostrou que 41% dos casais jovens, entre 18 e 29 anos, atribuem o mérito da aproximação às NTICs – Novas Tecnologias da Informação e Comunicação. Por outro lado, em estudo realizado pela ONU, concluiu-se que mais de 70% das mulheres entrevistadas já sofreu algum tipo de violência on-line.
Mas o que tem a ver uma coisa com a outra?

A pessoa começa a namorar, flertar, ficar, seja lá qual for o termo utilizado para a relação, mas, a partir dela e por ela, passa a sentir-se suficientemente segura e confiante para compartilhar sua intimidade, fotografando-se ou permitindo ser fotografa e/ou filmada, simplesmente, sem roupa. De repente e muitas vezes sem sequer entender o motivo, as imagens que foram compartilhadas na confiança passam a servir de insumos para ameaças e chantagens.

“Tire a roupa e masturbe-se diante desta câmera ou divulgarei suas imagens nas redes sociais” ou “Me mande um vídeo dançando sem roupa ou farei com que suas fotos nuas circulem nos grupos do seu trabalho” ou “Me encaminhe novas fotos em diferentes posições ou divulgarei aquele vídeo nos grupos do colégio ou da faculdade”, entre outros exemplos igualmente repugnantes.

Felizmente, essas situações têm impactado nas legislações. Exemplo disso foram as recentes mudanças no Código Penal, em razão da Lei 13.718/2018, que trouxe seis importantes mudanças nos crimes contra a dignidade sexual. No entanto, a partir de uma demanda da própria sociedade da informação, antes disso, em 2009, foi sancionada a Lei 12.015, que, ao unir o crime de estupro ao de atentado violento ao pudor, todo e qualquer ato libidinoso que seja praticado por meio de violência ou grave ameaça passou a ser considerado estupro, ou seja, o artigo 213 da legislação penal mudou a tipificação do crime de estupro, não havendo mais necessidade da consumação do ato de forma carnal para ser considerado crime.

Compreenda que, diferente da ‘sextorsão’, quando a pessoa exige dinheiro ou outra contrapartida material, nesse crime a pessoa espera que a vítima tenha com ela conjunção carnal ou pratique algum ato libidinoso. Aí é que entra a atualização legislativa como mais um importante marco no combate à violência sexual, já que o ato libidinoso entrou no tipo, que antes restringia-se à conjunção carnal.

O ato de tolher a liberdade de alguém, de exigir que pratique a masturbação, sexo oral, posições ou toques íntimos sob violência ou grave ameaça, configurada pela promessa de causar um mal injusto ou atentatório à dignidade sexual, pode, sim, ser considerado estupro, e, se esse constrangimento se der por meio da internet e de ferramentas que ela ofereça, estaremos diante de um crime de estupro virtual, considerado hediondo, não dando direito à fiança e com pena que pode chegar a 10 anos de reclusão.

Ainda, é válido considerar que nem sempre o crime é praticado por um estranho ou alguém com quem não se tenha, de fato, praticado um ato consentido, inclusive, de conjunção carnal. Não é incomum ex-namorado ou ex-marido que detenha fotos e vídeos íntimos obtidos enquanto desfrutava de um bom relacionamento e que, desgostoso com o fim da relação, se vale dos materiais para a prática do estupro virtual.

Outra possibilidade para esse tipo de crime pode ser mais bem ilustrada a partir do primeiro caso enquadrado como estupro virtual no Brasil, ocorrido em 2017, no Piauí. Um técnico de informática teve acesso a fotos íntimas de uma namorada e passou a chantagear a vítima para que gravasse e enviasse a ele vídeo se masturbando, caso contrário, suas fotos seriam divulgadas nas redes sociais e enviadas aos familiares.

No entanto, muito embora essas ameaças possam afetar qualquer usuário da internet sem distinção, preocupa o fato de que crianças e adolescentes também se tornaram alvo desse tipo de crime, tanto na condição de autor quanto de vítima. Apesar do enforcement da lei, não podemos esquecer que falamos de seres em condição peculiar de desenvolvimento, que, apesar de extremamente habilidosos com as novas tecnologias, são desprovidos de discernimento sobre os riscos a que muitas vezes ficam expostos no ambiente virtual.

Por fim, um fator preocupante e que está diretamente relacionado à falta de informação é o medo que boa parte das vítimas tem de denunciar, o que faz com que os agressores fiquem impunes e, de certa forma, ainda mais encorajados a fazer mais e mais vítimas.

É muito importante que a vítima conheça seus direitos, não tenha medo, vergonha ou, pior, sinta-se culpada e sem saída por um dia ter confiado sua intimidade a alguém que não merecia. É importante também que sejam preservadas todas as evidências (vídeos, áudios e mensagens contemplando as chantagens e ameaças), devendo a vítima dirigir-se à Delegacia da Mulher e/ou procurar um advogado especialista em crimes cibernéticos.

ALESSANDRA BORELLI é sócia do Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados. Advogada com Executive Program in Digital Transformation pelo MIT e especialização em Metodologias Inovadoras Aplicadas à Educação Corporativa pela FGV-SP, Professora convidada dos cursos de Proteção de Dados e Direito Digital do Insper, FAAP, ESPM, EPD e Ebradi.