Dia a dia

Dia a Dia

27 de abril de 2023

PATRICIA LOPES PEREIRA SANTOS

O resgate

Alguém da família escreveu no grupo de whatsapp:“liberaram as visitas na UTI”. O pai de Lara levantou-se da mesa para que, juntamente com a lasanha, ele engolisse a novidade indigesta sobre a mãe.

A notícia não era totalmente inesperada, eles sabiam que vovó Mari há tempos “subira no telhado”, e estava prestes a despencar junto com o otimismo investido numa batalha desleal com a sua doença. Era o turno final de sua hora extra.
A mãe de Lara também se levantou da mesa em silêncio e foi raspar a sobra de comida no lixo da pia, a batucada do garfo na louça assanhava os pés da mulher, ela queria sambar.

Os desentendimentos entre a nora e a sogra começaram cedo, ainda no namoro dos pais  de Lara, a covardia do seu genitor para administrar a luta livre entre a parceira e a mãe só potencializaram os conflitos, que ao que parecia estava prestes a findar com a notícia veiculada pelo whatsapp.

Curiosamente, as duas mulheres usavam as próprias idades como razão para não levantarem a bandeira branca. Para a mais nova, a experiência de vida da sogra deveria tê-la tornado mais flexível, e para a mais velha, era justamente a juventude da nora que deveria promovê-la com essa virtude.

E no meio das duas bicudas, estavam Lara e suas carências e o pai dela se entupindo de Omeprazol .                                              Ela nunca compreendeu os mimos de vovó Mari para com a sua prima Socorro. Para esta, choviam bolinhos fritos salpicados com canela e açúcar; para aquela, restavam  murchos biscoitos de polvilho aniversariando na lata de alumínio.
Nos finais de semana, o cantinho na cama da vovó era da prima, enquanto o colchonete fedendo a morrinha do tio porra louca abraçava o sono de Lara.

Na noite de natal, a expectativa de Lara era ganhar da avó presentes grandes e duros embalando desejados brinquedos infantis, iguais aos ofertados para Socorro, mas eram as odiosas embalagens molengas lotadas de calcinhas que preenchiam a sua meia debaixo da árvore. Mas o desejo dela sempre estar com a avó era maior do que a rejeição da velha.
Na adolescência, Lara até carregou uma certa culpa pelo descaso da avó. Com certeza a  indiferença dela seria por alguma incapacidade sua.

Até que depois de colecionar calcinhas e meias escolares presenteadas pela avó em datas importantes, Lara sufocou a sua ilusão de gozar do afeto sonhado.
E foram anos vivenciando o luto de uma pessoa viva, o desejo interrompido de amor, a ausência das memórias afetivas com a avó e o rancor da mãe de Lara pela sogra a fizeram se distanciar da família do pai.

E agora, ela estava ali, mulher feita e com a possibilidade de elaborar aquele luto infindável. Pela primeira vez, seria ela e não Socorro (que batera asas pelo mundo) a prioridade na vida da avó, ainda que no momento derradeiro. Sentiu-se envaidecida e até um pouco vingada por ostentar sua própria nobreza de espírito para a avó. Certamente naquele último ato, receberia os aplausos da mulher.

E Lara foi para a UTI, acelerou o passo em direção ao leito indicado pela enfermeira, e se deparou com a avó em pele e osso; a ausência da dentadura e dos óculos encovavam o rosto, os cabelos brancos e grossos em desalinho compunham aquela cena melancólica, e se não fosse pela verruga enorme na mão direita da senhora, ela não teria reconhecido a altiva vovó Mari.

Tocou gentilmente nas mãos da avó e pediu a sua benção, e supostamente foi abençoada apenas pelo olhar frágil da idosa que, como se tivesse chupado um limão siciliano, começou a contorcer o rosto macilento num semblante medonho e com as lágrimas escorrendo sussurrou: “Socorro…Socorro”, a voz cresceu“ Socorrooo… Socorrooo”, até que a equipe médica veio acudir ao pedido de ajuda da moribunda, e assim dispensaram Lara da UTI que olhou pela última vez para a fuça daquela velha insuportável.

PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS, graduada em odontologia (PUCMG) e direito (Fadipa), mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional (Unifacef- Franca) e Especialista em Direito Público (Faculdade Newton de Paiva), é servidora pública do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. E-mail: acitripa70@ gmail.com