20 de abril de 2023
LÚCIA AVELAR E SUZANA AVELAR
O livro “Histórias Jamais Contadas da Literatura Brasileira”, de Edson Aran, é uma verdadeira aventura. Ele nos captura pelo riso, nos colocando imersos na rede da vida complexa e pulsante, entre a condição do literato e o sujeito comum, quando um é outro.
Partindo do acervo literário brasileiro e das peculiaridades da nossa política, escreve e ilustra na linha dos maiores humoristas do país, como Millôr, Henfil, Jaguar, e tantos outros. Aran, a cada crônica, cria situações inusitadas que, na hora, nos fazem gargalhar, e, depois, pensar.
Assim, o autor circula entre duas linguagens, o cartum e a crônica, fazendo com que a mesma ideia se configure em uma e na outra. Ao mesmo tempo que cada linguagem expressa a mesma narrativa, ele as ilustra em duas vias, pelas ferramentas distintas. Isso significa dizer que a semântica se espalha pela articulação da escrita, e pelo traço caricatural.
Tanto que, após a leitura de cada capítulo, é preciso um tempo para desdobrar o conteúdo da escrita e das ilustrações, em toda sua extensão. Não dá para ler de uma vez só; a vontade é de cambalear entre a gargalhada que sobrepõe a escrita e o cartum.
Machado de Assis, José de Alencar, Álvaro de Azevedo, Clarice Lispector, o integralista Plínio Salgado, os ex-Presidentes Fernando Henrique Cardoso, José Sarney, e outros mais, jamais serão “imortais”, porque Edson Aran redescobre o caráter de cada um, sem dó nem piedade, em suas lides diárias, como ciumentos, narcisistas, briguentos, envolvidos em situações absolutamente prosaicas.
O livro está organizado em duas partes. Na primeira, “Do Quinhentismo ao Naturalismo, Guias turísticos da terra selvagem, a busca inglória por Dom Sebastião, Poetas Inconfidentes, os primeiros imortais e o problema de se falar Javanês” estão, entre outros, Pero Vaz de Caminha, escrevendo guias turísticos do Brasil, padre Antônio Vieira e o sebastianismo, José de Anchieta escrevendo longos poemas na areia molhada da praia, os poetas de Vila Rica envolvidos com os fiscais de Portugal.
Na segunda parte, sob o título “Do Modernismo ao Terraplanismo”, ele nos apresenta “Oswald de Andrade enfrenta odiosos ninjas, a imigração concretista para o Brasil, a pedra do Carlos Drummond, o sacrifício humano de Paulo Coelho e a incrível história do Mário. Má-rio”.
O Prefácio foi escrito por uma das suas personagens, Oraldo Grunhevaldo, um poeta concreto, que fala da grandiosidade do autor, Aran, seu grande amigo, que o acompanhou nas suas pesquisas em manuscritos e alfarrábios, para ajudá-lo a responder “O que é a literatura brasileira? Onde ela vive? Como se reproduz?”. Oraldo, no prefácio, rasga todos os elogios a ele próprio, e adiante, em outros capítulos, envolve-se com os concretistas, em situações surpreendentes e provocativas, inusitadas.
Tamanha criatividade tem uma longa história: Aran é escritor, jornalista, ilustrador, cada desenho do livro é um caso à parte. Natural de Cássia, Minas Gerais, de 1980 a 1981, ainda adolescente, publicava com amigos um jornal mimeografado “Raskunho”, descobrindo cedo que o humor, o jornalismo, a literatura, a história eram suas matérias de trabalho.
Formou-se em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, em seguida foi um dos escolhidos para o Curso Abril de Jornalismo e ali mesmo iniciou sua carreira profissional quando foi chamado para integrar a equipe da revista Contigo na secção de humor Fotofofoca. Trabalhou em O Pasquim, revista AZ, IstoÉ e Diário Popular.
Mais tarde foi diretor de redação da revista Playboy, com reportagens e entrevistas, cartuns, textos de humor. Tem pelo menos sete livros publicados além de inúmeras participações em antologias. Da geração da cultura digital, desenvolveu sites de humor: seu Twitter “O amor é outra coisa” ficou famoso e inspirou uma canção da banda Velhas Virgens. Isso para se falar o mínimo de sua trajetória profissional.
A crônica que deu origem ao livro se intitula “Machado de Assis, José de Alencar e a Guerra das Narrativas”. Na Confeitaria Colombo no Rio de Janeiro em 1897, José de Alencar, pediu um chá e uma bomba de chocolate e antes de dar a primeira mordida ficou de boca aberta olhando para o chocolate, embevecido pela delícia. Nesse momento entram Machado de Assis e Ruy Barbosa, promovendo o encontro entre homens cultos e homens comuns, contidos na figura dos literatos.
Bom, aí, deu-se um clima de confronto, do nada, e então compreende-se que a intenção de Aran, como ele mesmo diz, é brincar com os grandes literatos, subvertendo-os.
A cada crônica, um ou mais autores entabulam conversas hilárias seguidas de ilustrações no mesmo tom do humor da escrita. É do leitor a tarefa de sentir e descobrir a moral de cada história.
Mas vou destacar algumas que me fizeram pensar na sensibilidade do humor fino e do conteúdo político: as crônicas cujos personagens são Fernando Henrique Cardoso e José Sarney. O primeiro, analisa FHC como FHC, em situações excêntricas com a rainha da Inglaterra e com o Papa João Paulo II. O segundo, Sarney, como uma referência da cultura patrimonialista e oligárquica da nossa República. Uma síntese.
O assédio a Clarice Lispector nos reporta às mulheres profissionais de qualquer época: leiam a crônica “Clarice Lispector e o Agente Literário”. Uma das melhores denúncias que tenho visto.
Não poderia deixar de mencionar uma das primeiras crônicas do livro “Tomás Antônio Gonzaga, o Inconfidente Mascarado”. Um diálogo engraçadíssimo do Inconfidente com o cobrador de impostos de Portugal Antônio Francisco Lisboa. O nativo e o português enquadrados em provável confronto da época, cada um com seus preconceitos e convicções.
Aran maneja história, literatura e humor, explorando aquela situação como um roteiro de um filme ou de uma peça de teatro, nos transportando para o tempo de Colônia e imaginando o que deveria ser um simples passeio pelas ruas de Vila Rica, uma cobrança a cada esquina.
E, finalmente, porque é impossível retratar aqui tudo que nos emocionou, uma observação sobre a crônica “Olavo de Carvalho e os astros”. Ela é uma advertência sobre autores que se projetam nas mídias sociais na onda do anti-intelectualismo que veio junto com movimentos regressivos das últimas décadas em todo o mundo ocidental.
Aran mostra como aquele autor escreveria previsões astrológicas para um jornal intitulado Terra Plana News, publicado em 31 de fevereiro de 1981. O leitor não tem uma alternativa senão admitir que a vida sem a companhia de livros clássicos e de autores que atravessam os tempos, não o levarão aos muitos universos de pessoas, lugares e tempos que um bom livro oferece. As mídias sociais jamais irão substituir um bom livro, em papel ou digital, são eles que possibilitam a compreensão do mundo e da humanidade.
Uma coisa mais: os estudantes pré-universitários deveriam ler cada crônica do escritor Aran e, em seguida, ler uma obra do autor daquela crônica, porque, certamente, ele vai descortinar um universo dos mais abrangentes da literatura brasileira. E terá de analisar, em seguida, não apenas o contexto histórico, mas os costumes, a hierarquia de classe, a política.
Não deixem de ler Edson Aran: ele nos redescobre como um povo com sua história e sua literatura. E, nas palavras de Charles Simic (1938-2023) poeta nascido em Belgrado “o humor é subversivo”, e, digo ainda, você reage rindo, mas, depois, as imagens e palavras não saem da sua cabeça. (obrigada, Ana Cândida, pela indicação).
Para um bate papo, Edson Aran estará nesta sexta, dia 21.04, às 17h, na Livraria da Praça, em Cássia.
LUCIA AVELAR é Pós-doutora pelo Departamento de Ciência Política da Yale University. Ex-professora da Universidade Estadual de Campinas, professora titular e diretora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.
SUZANA AVELAR GOMES. Livre docente na Universidade de São Paulo – USP, com atuação e pesquisa em moda, globalização, tecnologias, digital, cultura e arte.