O corpo
Mais de uma vez já contei, em crônicas, episódios narrando acontecimentos ligados à ação dos submarinos alemães que, na época da II Guerra, iam se reabastecer de água e alimentos no litoral da Amazônia, no Estado do Pará. Recebiam ajuda de membros da colônia alemã em Belém formada, em sua maioria, por cientistas que trabalhavam no Museu Emilio Goeldi. A história de hoje resvala pelo mesmo tema, mas com outros lances de, suponho, emoções e suspense; pois envolve, até, um caso d’amor. O ano é 1940 e a Praia da Corvina, em Salinópolis, hoje conhecido balneário no Atlântico paraense era, então, habitada apenas por pescadores; cujas casas ficavam por ali mesmo, entre a terra firme e a areia.
Foi num dezembro, manhã de Inverno chuvoso no qual as águas caiam interminavelmente, que um morador da área de repente avistou, sobre a areia, algo que lhe chamou a atenção. Aproximou-se para dar de cara com uma enorme bandeira que envolvia alguma coisa que poderia ser um corpo. Abaixou-se para verificar; de fato, era. Assustado, deu meia volta para chamar outras pessoas.
Em coisa de mais alguns instantes, sobre a mesa da sala de uma das modestas casas estenderam os despojos de um homem. Episódio absolutamente incomum por vários motivos: o cadáver, ainda em bom estado de conservação, exibia alguém com mais de 1,80 de altura, cabelos absolutamente louros; aparentava, se tanto, uns 30 anos. O detalhe do que vestia é muito relevante. Pois o corpo envergava vistoso uniforme militar, impecável. Os nativos, evidentemente, não reconheceram que a bandeira na qual fora enrolado o defunto era alemã, com enorme suástica negra ao meio, dentro de um circulo. A II Guerra tinha começado cerca de um ano antes, porém os moradores da praia nada sabiam sobre. E o militar, como descobriram muitos anos depois, fora tripulante de um dos muitos submarinos germânicos que trafegavam pela área. Certamente morrera a bordo e acabou sepultado, como é tradição entre os homens do mar, nas águas. As correntes das marés o levaram para a areia.
Como aqueles pescadores, na época, viviam controlados por suas próprias circunstâncias, decidiram sepultar o homem no pequeno cemitério da comunidade. A dona da casa, porém, que ficara encantada com a farda, resolveu vestir o cadáver com velhas roupas do marido e guardou o uniforme, lavado e passado com capricho. Junto, algo também importante: vários documentos e papéis achados nos bolsos. Mais a enorme bandeira vermelha com a suástica no meio.
Uma semana depois a filha do pescador que achara o militar alemão caiu doente, febre intensa. Os médicos por ali eram os moradores da comunidade mesmo, as enfermidades curadas apenas com remédios caseiros. E rezas. Que, contudo, pareciam não resolver o caso da menina. Até que, de repente, a mãe resolveu orar para aquele que ficou conhecido apenas como “O Homem Louro”, pedindo a cura da guria. Que, diga-se, não tardou. O que fez com que o militar achado na praia passasse a ser reverenciado como santo.
O tempo que, segundo dizem, é o senhor da razão, transformou completamente o cenário da praia da Corvina e arredores. As casas dos pescadores foram sendo substituídas por imóveis construídos pelos moradores de Belém que começavam a dar feição ao que se tornaria o balneário que é hoje. E, ali pelos anos oitenta e pouco, se deu a grande descoberta.
Um dia, jovem pesquisador do Instituto Geográfico buscou Salinópolis, nas férias. Foi quando, ao entrar num bar na Praia do Maçarico, deu de cara com enorme bandeira alemã, a suástica no meio, cobrindo uma mesa. Espantado, quis saber de um nativo o que era aquilo. Ouviu, meio distorcida, a história do cadáver que fora achado cerca de 50 anos antes na praia. Procurou mais detalhes. Soube que a esposa do pescador que encontrara o alemão ainda vivia e vendera a bandeira. Morava num casebre, não longe dali.
Não demorou e o pesquisador tinha, diante dos seus olhos pasmos, a impecável farda do tenente nazista que morrera a bordo e fora sepultado no mar. Entretanto, mais importante ainda, era o que fora achado nos bolsos. Os documentos do camarada e, entre os papéis, a fotografia de um rapaz de cabelos claros em companhia de linda moça. Ao fundo da imagem, servindo de cenário, a fachada do Theatro da Paz, a maravilha que é orgulho de Belém. De repente, uma carta, escrita num português meio capenga (dei uma copidescada), e endereçada a certa moça. Dizia assim: “Desde que deixei meu trabalho no Brasil, no Museu Emilio Goeldi, de Belém, que nada mais faço na vida além de pensar em você. Seu país ainda não está envolvido nesta guerra, na qual estou, a bordo de um submarino, por ter sido recrutado como cidadão alemão. Mas tenho esperanças, querida. Que, terminada essa verdadeira loucura, eu possa voltar para junto de você e para o nosso sonho de amor”. A assinatura apenas um “do seu, Dietrich”.
O epílogo da história é que o pesquisador fuçou, fuçou até encontrar pistas da moça a quem a correspondência era destinada. Pretendia ir à casa dela entregar, porém se informou antes. Quando ficou sabendo que a destinatária era, então, uma senhora idosa da alta sociedade casada com rico médico, cercada de filhos e netos, desistiu. Assim, certa tarde, o rapaz pegou a carta d’amor, a fotografia e colocou num prato. Onde, graças a um palito de fósforo, tudo virou cinzas.
ANTONIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão.