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Dia a Dia

Banho de Chuva

Os nossos encontros são anuais, muito mais pela dinâmica da vida do que pela nossa vontade. Mas apesar dos trezentos e sessenta dias de distância, quando nos reencontramos, somos as mesmas amigas, cúmplices e sonhadoras de tantos anos atrás.
Os ”nossos destinos foram traçados na maternidade”, não pela data de nascimento, pois entre uma e outra há vários meses, mas pela forte amizade que nos une, mesmo sendo tão diferentes.
As diferenças manifestaram-se ainda na infância. Para ela, inúmeras regras familiares e um senso de obediência invejável. Tudo o que era bom de viver lhe era restrito. Andar descalça e tomar chuva, nem pensar. Usar roupas emprestadas, jamais. Sujar os dentes com jatobá, também não podia. Brincar na rua, só por curtos períodos de tempo.
Se carregamos muito da nossa família de origem, penso que minha amiga ficou no lucro, pois não herdou as manias da mãe. A mulher para entrar na própria casa subia e descia por três vezes os dezoito degraus do sobrado onde moravam.
Depois abria a torneira da pia da cozinha e dispensava golpes de Karatê na água corrente, no total cinco urakens. Só após esse ritual, sentia-se tranquila na própria casa.
Na minha casa também existiam muitas regras, mas quase nenhuma fiscalização. Meus pais lecionavam nos três turnos, e, ao chegarem esgotados do trabalho, queriam cama. Minhas irmãs e eu só entrávamos porque não havia outras crianças na rua para brincarmos. Nossa escova dental era o chiclete Ping-Pong mascado e duro deixado na beirada da cama.
Tanto refrescava o hálito para dormir, quanto para acordar. Deu tudo certo. Até hoje ninguém na família usa dentadura.
Durante esses bons encontros com minha amiga, ouço uma queixa recorrente. Ela se lamenta porque, na infância, não tomou chuva e nem brincou na enxurrada gigantesca da rua Bonsucesso. Enquanto a meninada se fartava com a chuva grossa e com restos de pau e lixo trazidos pelo rio marrom, ela, super comportada, assistia nossa alegria da janela. Após a chuva, havia o chocolate quente.
Desse ela participava, mas não tinha o mesmo sabor do nosso, temperado pela aventura vespertina.
Um dia desses, achei que a queixa subiu o tom e a convidei para tomarmos chuva. A resposta foi a esperada: “tá doida? Não somos mais crianças, não tem mais graça.”
Perguntei se o nosso encantamento com a vida estaria preso às fases cronológicas, e se no lusco-fusco da nossa existência não seria possível sentirmos o brilho da infância ou retornar a algum momento mágico da juventude.
Ficou em silêncio. Pelos gestos percebi nervosismo. Começou a tamborilar freneticamente os dedos no pescoço na mesma intensidade com que a mãe golpeava a água da torneira. Recuei.
Mas, como a amo, não posso deixá-la carregar para o túmulo uma frustração tão resolvível. Por isso, decidi, no próximo encontro anual, se o céu nos ajudar, tomarmos um banho de chuva a qualquer custo. .
Espero que ela não leia essa crônica. Do contrário, tenho certeza, o seu modelito para o encontro será um macacão de napa estilo motoboy e um enorme guarda-chuva.

PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS, graduada em odontologia (PUCMG) e direito (Fadipa), mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional (Unifacef- Franca) e Especialista em Direito Público (Faculdade Newton de Paiva), é servidora pública do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. E-mail: acitripa70@ gmail.com

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