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Dia a Dia

BENEDITO JOSÉ

Alô, alô, marcianos! 

Quando o telefone celular destruiu o uso dos relógios de pulso, eu não imaginava que estaríamos sendo enjaulados na cela do tempo. O danado nos amordaça com as correntes das horas. A gente dedica a ele o tempo precioso de nossa existência, aquele tempo que poderia gerar os melhores momentos de nossa vida, sem contar a interrupção dos afetos vitais para o equilíbrio emocional.

Ele não deixa a gente ver nossos filhos crescerem, ou nossa juventude voar nos céus das descobertas e das experiências, ao nos treinar para o automatismo. Fomos engessados na hipnose de seu poder estimulador. Somos pilotados por olhos invisíveis e levados a lugares que não pedimos, para fazer coisas que não queremos. Lá se foi nosso livre arbítrio.

Quando ele destruiu a lanterna, eu mal sabia que sua luz artificial ofuscaria nossa capacidade de pensar individualmente, banalizando o que antes nos incomodava. O danado injeta pensamentos prontos na mente coletiva. Ele matou a moral e os bons costumes, a civilidade e a boa convivência, os deveres e o sentido da vida.

Sem contar como aquela luzinha chata, acesa no escuro do ônibus ou avião, atrapalha o sono de quem quer dormir durante a viagem. Contando com recursos tecnológicos práticos, perdemos o atributo do respeito pelo espaço público, forçando outras pessoas a suportarem nosso mau gosto musical. Somos manés, barraqueiros, invasores, difamadores, tomadores do que não nos pertence.

Quando ele destruiu nossas conversas de restaurante e as risadas abertas de família, eu não tinha ideia da dimensão do abismo criado e suas consequências. O danado faz de conta que somos família com a inteligência artificial. São estranhos juntos na mesa do mundo, onde há lugar para todos serem egoístas, mas não há lugar para o desenvolvimento da potencialidade humana.

Pais desconhecem seus filhos e filhos desconstroem seus pais num toque de tela. O próximo sagrado deixou de ser referência, sendo substituído pelo lobo desconhecido e predador. Danem-se todos. Convivam com o diferente e sobrevivam se puder. É tempo de desconstrução total.

Quando ele destruiu a máquina de escrever, nem os poetas se deram conta do mal que fazia para a poesia nascer livre na mente das pessoas belas. O ChatGPT nos instigou a consumir diálogos formais e sem sentimentos. Dou-lhe uma tarefa de texto, ele a completa para mim e faz de mim um mentiroso, um farsante, um impostor, onde posso fazer bonito com o chapéu dos outros, sem me dar conta de que estou sendo anulado no ato mais sublime da criação.

A inércia se apodera de nós, pois podemos contar com as máquinas que um dia nos substituirão naturalmente nos postos de trabalho. O celular é apenas o início desta revolução digital de Orwell.

Quando ele destruiu a borracha de apagar, ele deletou em nós a força da amizade e a responsabilidade dos compromissos. O danado fez a gente abrir mão do imprescindível e trocá-lo pelo imediato descartável. Deletar tornou-se insalubre, pernicioso, frio, indiferente. Abriram-se portas para a traição, para a delação, para a censura, para a manipulação de fatos históricos.

Amigos foram trocados por seguidores, espontâneos ou comprados. Nossa vida pessoal foi revelada em praça pública sob o pomposo nome de Influencers. Tomamos uma enxurrada de informações e desinformações. Estamos sendo levados pelo ralo, junto com a água do chuveiro ideológico. Não importa saber, o importante é fazer o que der na telha.

Quando ele destruiu o senso crítico nas relações interpessoais e nos estudos intrapessoais, foi construindo um exército de idiotas úteis a serviço das empresas de tecnologia. O danado nos faz querer comprar sempre a versão mais atualizada, sem necessidade.

Criaram algoritmos para nos espionar e nos seduzir na compra de produtos que não precisamos. Nunca na história da Humanidade fomos tão ludibriados por um simples mecanismo de persuasão popular. Fomos virados pelo avesso, esvaziados, reduzidos em tamanho e importância, pela promessa de significância e felicidade momentânea. Isso é que dá você querer digitalizar. Sob sua permissão ou omissão, um simples telefone celular assumiu seu destino.

BENEDITO JOSÉ, escritor, integra a Associação Cultural dos Escritores de Passos e Região, cujos membros se revezam na autoria de textos desta coluna aos sábados

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