DÉCIO MARTINS CANÇADO
Liberdades
É impressionante como algumas pessoas têm o dom de colocar seus pensamentos com clareza, no papel ou na fala, diante de uma plateia. Não é tão simples como às vezes parece, pois o pensamento é muito mais rápido do que a nossa capacidade de externá-lo, seja de que forma for.
É por isso que algumas se destacam mais do que outras quando se trata da arte da comunicação, nos relacionamentos e em determinadas profissões. Não basta apenas querer, pois é uma habilidade que, além de uma competência natural, necessita também de muito treinamento e muita leitura.
Luiz Fernando Veríssimo é uma dessas pessoas que sempre nos surpreendeu com seus artigos, suas reflexões e sua capacidade de síntese a respeito dos temas mais comuns e cotidianos. Por acaso, encontrei em meus arquivos este texto que, com algumas pequenas adaptações, passo a vocês para que também compartilhem essa alegria comigo:
“É livre quem pode fazer o que quiser – dentro das suas limitações de espaço, tempo, energia e recursos. Só se é livre dentro de certos limites. Portanto, toda liberdade é condicional.
Podemos afirmar que só é totalmente livre quem pode exercer a sua vontade sem qualquer limitação, moral ou material, isto é: o tirano. Assim, a liberdade suprema só existe nas tiranias.
Dizer que a minha liberdade termina onde começa a do outro é muito bonito. Mas e se a liberdade foi mal distribuída e o meu vizinho tem um latifúndio de liberdade enquanto a minha é um apenas um pequeno quintal… ‘Liberdade mesmo que tadinha’? Não é feio sugerir um reestudo da divisão.
Cuidado com quem dá aos outros toda a liberdade. Geralmente é quem pode tirá-la.
Há os que passam o dia inteiro livres e chegam em casa se queixando disso. São os motoristas de taxi. Estranho, não?
Toda liberdade é relativa. Verdade exemplarmente ilustrada por esse diálogo entre o preso e o carcereiro: – “Nunca mais vou sair daqui”. – “Calma. Não desanime”. – “Não tem jeito, estou aqui para sempre”. –“Vou ver o que posso fazer por você”. – “Não adianta, estou condenado; desta prisão eu não saio, esqueceram-se de mim”. –“Eu não esquecerei; voltarei para visitá-lo”. – “Promete”? – diz o carcereiro…
Quem é livre, às vezes, não sabe. Quem não é livre sempre sabe. Ou será o contrário? A gente vê tanta gente inexplicavelmente feliz. Alguns são obcecados pela liberdade e prisioneiros da sua obsessão.
Os loucos são livres, e vivem presos por isso.
Poderia se dizer que livre, livre mesmo, é quem decide de uma hora para outra que naquela noite quer jantar em Paris e pega um avião. Mas, mesmo este, depende de estar com o passaporte em dia e encontrar lugar no primeiro voo. E nunca escapará da dura realidade de que só chegará a Paris para o almoço do dia seguinte. O planeta tem seus protocolos.
Fala-se em liberdade como se ela fosse um absoluto. Mas, dizer “eu quero ser livre” é o mesmo que dizer “eu quero” e não dizer o quê. Existe a liberdade ‘De’ e a liberdade ‘Para’. Não é uma questão apenas de preposições e semântica. É a questão do mundo. O liberalismo clássico transformou a liberdade ‘Para’ em modelo. Você é livre se tem liberdade ‘para’ dizer o que pensa e fazer o que quer, ‘para’ ir e vir e exercer o seu individualismo até o fim, ou até o limite da liberdade do outro. A ideia de que a verdadeira liberdade é a liberdade ‘De’ é recente.
Livre ‘de verdade’ é quem é livre da fome, miséria, injustiça, liberdade predatória dos outros. A ideia é recente porque, antes, era inconcebível. Ser livre da tirania era automaticamente ser livre para o que se quisesse, para a vida e a procura individual do Paraíso. Foi preciso uma virada no pensamento humano para concluir que Liberdade ‘Para’ e Liberdade ‘De’ não eram necessariamente a mesma liberdade e também outra virada para concluir que as duas eram opostas.
A última virada é o pensamento de que uma liberdade precisa morrer para que a outra viva. Não concorde com ele muito rapidamente.
Enfim, de todos os crimes que se cometem em nome da liberdade, o pior é a quantidade de argumentos que se criam para tentar explicá-la.
Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, completamente livre, é a que não tem medo do ridículo”.