ADAÍLTON ALMEIDA
A última parada
Desceu na última parada.
Saiu do ônibus cabisbaixo, chutou uma pedra no chão, machucou o calo por baixo do sapato, mas não se incomodou muito. Machucar-se era comum. A vida o feria como qualquer outro, o maior sinal de estar vivo: a dor.
Parou em frente à padaria, após subir uma estreita calçada de pedras.
Pediu dois pães, olhou para trás, hesitou um pouco, retificou e pediu apenas um.
Então vagarosamente, como se os pés fossem de chumbo, caminhou em direção à sua casa.
Girou a chave sem expectativa e abriu a porta. Olhar vago e distante, quase não notou as correspondências no chão.
Boletos, o jornal do dia e uma carta. Espere, uma carta!
Não esperava carta, não esperava coisa alguma.
Colocou o envelope sobre a mesa de centro da sala, com certo receio de que a curiosidade se apossasse de seus dedos.
Parentes possuía, mas há muito não entravam em contato, e quando entravam era por aplicativo de mensagem, geralmente para pedir algum favor ou em graves situações, raramente no seu aniversário também.
Mas não esperava, acostumou-se a não esperar, não recebia visitas, os vizinhos mal o cumprimentavam, talvez o seu semblante fosse amargo demais para o gosto das pessoas. Mas geralmente com os animais se dava bem, principalmente os de rua, como se compartilhassem em segredo a coincidência do abandono.
O sol fechou os olhos e as estrelas acordaram, era noite. A carta sobre a mesa o ameaçava, petulante afrontava sua consciência para que fosse despida, para que o seu miolo pudesse fisgá-lo de alguma maneira e retirá-lo da sua rotina trivial.
Sentou-se no sofá, o silêncio estático, o relógio de parede sem bateria, marcava oito, mas provavelmente era bem mais tarde. A casa, como ele, tinha certo requinte de introspecção, resignação e abandono.
De súbito notou um nervosismo periférico: seu pé balançava e batia levemente no chão. Ao notar o movimento paralisou-se, não permitiria que o frenesi
chegasse ao peito. Estava por demasiado grisalho para esperanças jovens. Então fitou a carta novamente, aproximou-se.
Letras garrafais e inclinadas diziam “Ao Senhor da casa da esquina”, tocou então o envelope, com toda a cautela, como quem pega uma brasa no fogo, virou-o. Não havia remetente. Provavelmente não fora entregue pelo correio.
Beliscou a ponta do papel onde se fechava delicadamente e abriu retirando de dentro uma folha alva, marcada com uma letra inclinada como a que grafava o destinatário na parte externa do envelope, provavelmente uma mão pesada, pois a letra fazia relevo no papel.
Percorreu as primeiras linhas, degustando cada palavra:
“Caro senhor que mora na casa antiga da esquina, já há algum tempo, tenho- lhe observado com certa discrição, pois entendo sua postura furtiva diante do mar de gente desse mundo, também já estive à deriva, entregue ao naufrágio dos dias ruins. Vejo também que anda desacompanhado, desprovido de quem lhe engane por algum tempo a solidão. Não sei se tem cachorro, mas também vejo que se dá muito bem com eles. Gostaria que tivesse…”.
O homem interrompeu a leitura abismado, e um pouco aflito, quem nesse mar de gente teria desperdiçado o tempo que fosse para reparar em sua vida tão anônima, a ponto de caracterizá-lo com angústias tão suas, as quais não dividia com ninguém?
“Senhor, não pretendo invadir sua vida, nem lhe tirar a paz, por isso desde já informo que espiar nunca foi do meu feitio, mas é que me provoca a sua presença, reverbera o meu passado, e traz à tona o que já fui um dia. Bem, vejo que tem um bom coração, apesar da amargura que carrega, sei que há dias que leva dois pães, quando encontra o mendigo na marquise em frente ao prédio.
Confesso que nunca tivemos tempo de trocar além de um bom dia, não me atrevi, pois respeito sua individualidade, mas gostaria de dizer, por fim, que não é obrigado a carregar a solidão nas costas, algo que aprendi é que nunca se está sozinho, quando se está disposto a dividir”.
Ciente de que tinha desvendado o enigma, o homem perdeu o sono sonhando aquela noite, esperando o sol abrir novamente os olhos, para confirmar sua aposta.
Enfim amanheceu e ele percorreu o mesmo caminho, porém não caminhou cabisbaixo, alinhou a coluna, desceu na última parada e entrou na padaria.
Olhou para trás e depois para o ancião que o atendia sorridente, o qual lhe disse bom dia. Cumprimentou-o e pediu dois pães.
Antes de ir embora retirou a carta do bolso e um pouco trêmulo perguntou se o atendente reconhecia aquela carta. O qual, para seu espanto, respondeu negativamente.
Descontente com a aposta perdida seguiu para a casa.
No caminho deparou com um andarilho que cochilava sobre um papelão, deixou um dos pães embrulhado ao seu lado.
Já tinha andado três metros, quando ouviu o sujeito dizer bom dia e agradecer pelo pão. Parou e virou-se, para responder ao cumprimento, mas antes que o pudesse fazê-lo, o sujeito completou dizendo: Ainda acho que deveria ter um cachorro.
ADAÍLTON ALMEIDA, escritor, integra a Associação Cultural dos Escritores de Passos e Região, cujos membros se revezam na autoria de textos desta coluna aos sábados