Dia a dia

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26 de outubro de 2023

PATRÍCIA PEREIRA

Pintinho Doente

“Filho é que nem dedo da mão, não existe um igual ao outro”, já ouvi essa frase de muitas mães. Na minha casa, mamãe ainda completava: “nem parece que essas meninas saíram da mesma barriga”.
Como mãe, não tenho parâmetro de comparação, possuo um só filho, mas, com certeza, essa também seria a minha fala. Cada filho é único.

Mamãe tinha uma maneira peculiar de nos distinguir: eu, a primogênita e a caçula éramos as águas mornas da família. Já a filha do meio, um misto de tempestade e furacão em alto-mar, hoje bem abrandados pelo outono da vida.

Mas quem segurava um furacão em alto-mar? Mamãe não conseguiu. Por um descuido momentâneo dentro do box do banheiro, uma bebê de nove meses ganhou cinco pontos no nariz e uma mãe cuidadosa carregou por anos o sentimento de culpa na alma.

Esse acidente foi apenas o primeiro na infância inquieta e curiosa da minha irmã.
Enquanto eu e a caçula nos contentávamos em comer bolachas Mabel assistindo o replay do episódio do Sítio do Picapau Amarelo, a do meio comia as rosquinhas dela, as nossas e depois ganhava a rua.

Certa manhã cismou de escorregar numa tábua cheia de pregos enferrujados. Um deles acertou em cheio a coxa torneada pelas guloseimas. O retalho desbeiçou e junto com o sangue vermelho vivo jorrou um tecido esbranquiçado que, mais tarde, o médico explicou ser a gordurinha da perna dela. Ela levou uns pontinhos, pouca coisa, mais ou menos uns quinze.

Naquela época a gente amava brincar em carroceria de caminhonete. A brincadeira consistia em subir pelas rodas e descer pela traseira do veículo. Não satisfeita com aquela marca registrada em formato triangular em sua coxa, a menina pulou da rabeira da caminhonete do vizinho e os pontos se abriram. A ferida desbeiçou novamente. A cicatriz ganhou mais três lados e mamãe cabelos brancos a mais na cabeça.

Poucas coisas sossegavam a minha irmã. Comida e bebida eram algumas delas.Na ânsia de pegar os doces de balões estourados numa festa infantil, ela foi carimbada com mais uma cicatriz, desta vez, no joelho rechonchudo.

Ela também fez um enxerto no braço e machucou um dedo da mão. Nesse último acidente, nem as reclamações de dor e tampouco o dedo mindinho imóvel fizeram com que mamãe, saturada de tanto hospital, a levasse ao médico.
Pois bem, o dedo estava quebrado e assim ficou.

Depois, mostrava pesarosa o dedo torto, e trazia na ponta da língua o discurso de filha do meio, esquecida pelos pais. Segundo ela, não ter sido tão esperada quanto a primogênita, e nem tão bajulada quanto a caçula, justificavam o seu espírito um tanto quanto atrevido.

Para piorar a situação e é lógico, que de forma inocente, mamãe a apelidou de “ Pintinho Doente”, que seria uma espécie de ovelha negra (da música da Rita Lee), só que na versão infantil.
Pela teoria de mamãe o pintinho doente era o alvo negativo do galinheiro. Se houvesse uma briga de galo, sobrava para o pintinho doente.

Caso o poleiro não acomodasse todas as aves, o pintinho doente era o excluído. E a sua cabecinha frágil era para-raio das bicadas das outras galinhas.
Mamãe usava a tática “bate e assopra”. Pois tanto ralhava pelas peraltices da filha, quanto percebia que ela sofria com as consequências delas, então a consolava.

Hoje o pintinho doente faz terapia e busca curar as feridas da alma aos pés do Bom Pastor. Ainda está crescendo e descobrindo o seu potencial. Logo conseguirá, com a ousadia de sempre, alçar voos tão altos como uma águia. E quando chegar essa hora, eu e a caçula estaremos aqui para aplaudi-la.

PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS, graduada em odontologia (PUCMG) e direito (Fadipa), mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional (Unifacef- Franca) e Especialista em Direito Público (Faculdade Newton de Paiva), é servidora pública do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. E-mail: acitripa70@ gmail.com