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Dia a Dia

Foto: Reprodução

ANTONIO CONTENTE

Longe deste insensato mundo

Nas minhas horas mortas aqui em Campinas, aquelas em que o céu se prolonga para nele caber mais nuvens, costumo lembrar da pequena vila de Paquara, no litoral atlântico do Pará. Por lá andei com mais frequência no passado, mas pretendo voltar logo, antes que o galo deixe de cantar. É que ali, francamente, não existe crise. Isso porque o bolo a ser dividido é tão incomensuravelmente pequeno que o homem mais rico do lugarejo tem pouco mais do que o menos que o mais pobre possui.

É verdade que aquele, ao contrário deste, tem geladeira. A gás de botijão, é verdade, pois a luz elétrica, fornecida por um gerador Diesel, é parca: acende às 18 horas e apaga às 22.

Certamente existem, não apenas na Amazônia Profunda, mas em todo o Brasil, lugares que podem ser classificados como “longe deste insensato mundo”. Só que Paquara é demais. Os jornais de Belém, por exemplo, chegam sempre com uma semana de atraso. Televisão, poucos já viram; internet, nem pensar. Telefone celular não pega, e o isolamento só não é total porque há rádios a bateria.

De veículos motorizados, apenas um velho caminhão da prefeitura, mais um Jipe da época da Segunda Guerra, pertencente ao pároco. Se você ainda não alcançou aonde quero chegar, explico: acho que tal isolamento confere, a quem mora em Paquara, não apenas certa santificação da privacidade, mas também a meiga inocência permitida pelo desconhecimento de certas coisas. Certa vez lá, nem faz muito tempo, perguntei a um homem de uns 60 anos se ele sabia quem eram José Sarney, Renan Calheiros e Paulo Maluf. Peguei as três personagens não apenas pelo fato de serem pessoas notórias, como também pelas semelhanças das rapinagens que, em conjunto, burilam e ampliam.

— Não – o sujeito me respondeu – não sei quem são.
Sempre que fui à Paquara curti incontrolável vontade de não querer ir embora. No pequeno quarto da estalagem onde costumo ficar, um sobrado de madeira, convivo numa espécie de irmandade com o guarda-roupa tosco e a despojada rede. Uma tarde, verão maravilhoso, conclui que me aproximava da sabedoria de poder conversar com as baratas que às vezes passavam sobre minhas sandálias. Ou com a lagartixa (osga) que abocanhava pernilongos acima da porta.

Nos meus dias, sempre fui acordado pelo canto de um mesmo bem-te-vi. Certa manhã, não por acaso, eu o vi. O amarelo das suas penas fendia, de forma inapelável, o verde de um galho de frondosa mangueira plantada na beira de alto barranco à esquerda da janela. Além de tudo, tive certeza de que a avezinha também me viu. Pois acenei e, como resposta, tive um trinado mais forte. Depois, o danado voou em minha direção, dando rasante sobre a mão que a ele espalmei.

Dizem, e sobre isso o empresário campineiro Pedro Porto, o mais constante viajante internacional que conheço, me confirmou, certa vez, que o hábito das “happy hours” surgiu em Nova Iorque. Porém, após alguns dias na vilazinha perdida no litoral do Pará, e tão perdida que nem consta nos mapas, comecei a colocar em dúvida o ensinamento do amigo globetrotter.

Pois em Paquara os pescadores que voltam do mar desde sempre se reunem numa birosca montada sob a vasta copa de descomunal mangueira, para a curtição cachasística de crepúsculos dignos dos deuses. Não há o piano de Peter Nero, é certo, nem a cadência da voz de Bobby Short. Mas pintam sabiás que explodem os peitos em trinados fora de série e, com as últimas luzes do dia, bandos de araras, papagaios, garças e gaivotas passam no rumo das ilhas, emitindo sons melhores do que o balanço do Zimbo Trio dos bons tempos.

Na estalagem meus cafés da manhã eram magros, mas tão absolutamente magros, que me sentia, diante deles, como um São Francisco de Assis exercitando jejuns. Tinha apenas pão caseiro de massa grossa, uma xícara de café plantado ali mesmo e ali mesmo moído em pilão. Como toque de sofisticação, dois ovos de jabutis; cozidos às vezes, às vezes fritos. E um belo jarro d’água. De coco.

Nas refeições eu comia peixe e galinha, galinha e peixe, numa constância de fazer morrer de rubor os adeptos da “nouvelle cuisine”. Entretanto, cada prato era tão formidavelmente bem temperado com ervas nativas, que o seu paladar espantaria qualquer “cordon bleu”, fosse ele o sofisticado cronista social Almir Reis, ou os seus amigos Ricardo e Vitória Ferrari, frequentadores constantes dos melhores restaurante do eixo Nova Iorque, Londres, Paris e Roma.

Afinal, recordo agora essas emoções porque os dias de paz são curtos como aquilo que, antigamente, chamavam de “Rosas de Malherbe”. Na véspera de voltar à civilização minha principal diversão era contar nuvens, à tarde; e tantas, tantas estrelas à noite. Neste caso, gostaria de ter ficado lá contabilizando até chegar à última. Pois só assim, ensinavam os chineses da dinastia Chung Ki Yang, os seres humanos alcançam o paraíso. Que está no infinito, onde se ceva o finito de cada um.

ANTONIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão.

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