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Dia a Dia

GLEISSON KLEBERT DE MELO

Meu pé de chinelo velho

Desde que me casei, o uso dos meus chinelos é regido pela cláusula pétrea da comunhão de bens. Não são só meus. Mesmo que meu número seja maior. Mesmo que tenha dois pares. Quando preciso dos meus chinelos, não os encontro noutro lugar senão nos pés da consorte que ouviu meu sim, no altar, há mais de 15 anos.

Depois que minha filha nasceu encontrei na pequena herdeira de nosso DNA a mesma prática. Volta e meia, estão em seus pezinhos, meus chinelos de dedo. Puxou à mãe fazendo do pai sócio minoritário na sociedade Havaiana.

Dia desses, ou melhor, madrugada dessas, ao me levantar para beber água e, passando pela sala, encontrei um dos pés do meu par de chinelos virado num esforço grande para se desvirar sozinho. Atendendo a uma pulsão irracional de desvirar chinelos, fruto da ingênua crença de manter viva a mãe, com o pé mesmo, iria voltá-lo a posição normal. Nessas situações, o diálogo interno é sempre o mesmo. “Um chinelo virado nada pode ter a ver com a manutenção da saúde e vida de minha genitora. Mas é tão simples, né? Custa nada desvirá-lo.”

Não sei se expliquei bem, mas no episódio da “madrugada qualquer” que narro acima, o chinelo estava a se desvirar sozinho. Isso mesmo, sozinho. Nem precisou que eu mesmo o fizesse como fiz a vida toda. Foi o que me chamou mais atenção e fez-me esfregar os olhos a dissipar o sono que ainda restava. Firmei o olhar e realmente vi o chinelo se desvirando. Num esforço que fazia verter-lhe suor. Quando finalmente se desvirou, o próprio notou meu olhar interrogador.

Quebrando o silêncio, com certa rudez, o mesmo me disse:

– Você poderia resolver com sua família essa questão de uma vez por todas. Já estou tendo crises de ansiedade chinelar. Vocês são muito desmazelados. Nos deixam em qualquer lugar e na maioria das vezes virado.
– Hum!? Eeeeuuu, estou falando com um chinelo?
– Sim, porra!!!! Você mesmo me comprou nas Americanas. Qual o espanto?! Faz seguinte…
Sim!
– Ficar virado nem é nosso maior problema. O problema é saber a quem pertencemos. A você, sua esposa ou filha. E essa dúvida só nos incomoda, eu e meu par, nas horas em que estamos virados. Se ficássemos sempre certinhos, solado no chão e alça para o céu, estaria tudo certo. Em nada nos importaria se você, a esposa ou filha nos usasse.
– Mas qual o problema de ficarem virados? A mãe morre? Perguntei ironicamente.
– Morre seu displicente!!! Vai dizer que nunca tinha ouvido essa verdade?! Mas como não sabemos pra qual mãe mandamos o telegrama ficamos aqui na dúvida. Quando nos deixam virados essa dúvida nos faz muito mal. Ansiedade, sabe?!
– Como assim?
– Não sabemos se atingimos a sua mãe, sua sogra ou sua esposa, porra!!!. Oh! Dúvida cruel… Sussurrou olhando pro céu.
Ante tal exclamação, tratei logo de encerrar a conversa do meio da madrugada com brevidade prometendo não deixá-los mais virados. E tratei logo de dormir. Ou o melhor era acordar?

No dia seguinte, estavam lá na sala. Um do ladinho do outro os chinelos com uma frase estampada, “por onde você for quero ser seu par”. Guardei-os certinhos na sapateira e na sequência liguei pra minha mãe…

GLEISSON KLEBERT DE MELO, natural de Santana do Jacaré/MG, tem dois livros publicados, membro da Associação Cultural dos Escritores de Passos e Região, cujos membros se revezam na autoria de textos desta coluna aos sábados.

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