PATRÍCIA PEREIRA
Assombrações
Já que na última crônica resolvi tirar defunto da cova, continuarei nessa vibe. Hoje é o dia das assombrações, que segundo dizem por aí: “só aparecem para quem tem medo.”
Quando criança, eu sentia um misto de medo e fascínio pelas assombrações, que eu nunca soube definir muito bem. Poderia ser uma alma penada insatisfeita com a mulher da foice que chegou antecipadamente, o ET de Varginha que resolveu dar um pulinho na região sudoeste das Minas Gerais, ou até mesmo o tal chupa-cabra, esse ser híbrido que ninguém nunca entendeu o que era.
Mas, como já falei em outro texto, contar causos sobrenaturais era a forma encontrada pela vovó Luzia ,que fazia pamonhas para vender, para seduzir os netos a auxiliarem na catança de milho da véspera.
Reunidos ao redor de sei lá quantas “mãos de milho”, acomodados em escadas, na beira da fornalha ou em palhas esparramadas pelo chão, com as mãos e os ouvidos atentos, limpávamos o milho e ouvíamos pela centésima vez a mesmas histórias mal-assombradas.
O que me trazia a convicção da veracidade dos causos era o fato de vovó contá-los sempre da mesma maneira, sem modificar sequer a entonação da voz. O balanço vertical da cabeça do vovô Chico legitimava a narrativa. Ao final ele confirmava:”Quando a Luzia me acordou, eu ainda ouvi o latido dos cachorros e o ranger da porteira.”
Vovó Luzia contava que tudo aconteceu quando eles moravam na roça. Ela despertou por volta de meia-noite (sempre nesse horário), com o latido dos cachorros, ouviu o barulho da porteira e o da tramela da porta da cozinha trancada por dentro se abrindo. O medo a impedia de acordar o Vovô Chico.
Escutou passos na cozinha e “alguém” remexeu nos utensílios dispostos a secar no escorredor. Seguiu-se o barulho da água enchendo o canecão e da máquina de moer café trabalhando. Por um breve momento, houve silêncio, quebrado pelo barulho do café coado caindo no bule de alumínio.
Outro silêncio mais demorado. Depois, a porta da cozinha rangeu novamente e ela ouviu os passos se distanciando da casa. Nesse momento, teve forças para acordar o vô Chico que ainda testemunhou os latidos dos cães e a porteira da roça sendo fechada.
Imediatamente, os dois levantaram-se para confirmar o ocorrido e encontraram a cozinha intacta, sem vestígios de ter sido recém usada.
Para mim, não tenho dúvidas que, de fato, os meus avós foram visitados por uma assombração inofensiva, que além de ser uma boa apreciadora de café, era super organizada.
Se da inofensividade da assombração “apreciadora de café” eu gostava. Não posso dizer o mesmo da”viúva do Zé Leite” que me trouxe grande transtorno.
É que meus pais alugaram uma casa de um tal senhor José Leite que havia enviuvado recentemente e por isso estaria disponibilizando a casa para locação. Nós mudamos para lá. Mamãe morria de medo de encontrar a falecida, antiga moradora, na cozinha da casa.
Numa tarde, ao chegar do trabalho, mamãe encontrou um bilhete datilografado em cima da mesa. O bilhete dizia: “Dona Ana Maria, qualquer noite te farei uma visita. Assinado: Viúva do Zé Leite” O grande detalhe do bilhete era o remetente, pois o viúvo da história era o marido e não a esposa.
Mamãe não quis saber, pegou uma garrafa de água e enquanto o papai não chegava em casa, ficamos esperando por ele no alpendre.
Assim que papai chegou do trabalho, ele matou a charada. Olhou na biblioteca e deu falta de um livro. Então lembrou-se de que um amigo fora a nossa casa pegá-lo ( a porta da nossa casa nunca era trancada). O amigo, conhecedor do medo de mamãe, escreveu o tal bilhete para pregar-lhe uma peça.
Nenhum argumento foi o bastante para sossegar o coração de mamãe. Por conta da “Viúva do Zé Leite” mudamos de casa e de bairro, e eu, de amigos.
Fiquei assombrada, pois sair do conforto das antigas amizades e me deparar com um ambiente desconhecido é de tremer as bases de qualquer criança tímida.
PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS, graduada em odontologia (PUCMG) e direito (Fadipa), mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional (Unifacef- Franca) e Especialista em Direito Público (Faculdade Newton de Paiva), é servidora pública do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. E-mail: acitripa70@ gmail.com