BENEDITO JOSÉ
Entre leitor e autor
Quando eu leio, negocio meu tempo e intelecto com o autor. Sou eu quem decide o melhor horário e duração de nossos encontros, mas é ele quem produz o conteúdo para avaliação. Sou eu quem dá a última palavra, mas antes dela, é ele quem me dá milhares de ideias. Sou eu quem pesa e visualiza as imagens recebidas, mas é ele quem as concebe com graça e desenvoltura.
Sou eu quem filtra o que posso ou devo acreditar, mas é ele quem tenta me convencer de que tudo aquilo é verdadeiro. Sou eu quem se identifica ou não com as situações apresentadas, mas é ele quem as organiza para fazer sentido aos leitores. Sou eu quem sorri ou chora, prende a respiração ou a acelera, mas é o autor quem comanda os ritmos. Sou eu quem tenta antecipar os eventos, as reações, os destinos, mas é ele quem sabe aonde o livro se encerra. Se nossos caminhos se cruzarem, o livro é chamado de “bão”.
A leitura é inspiradora da alma, dos sentimentos, abrindo os cofres do coração e do desejo do leitor. Somos todos ricos de memórias e conteúdo, esperando a oportunidade para serem expressos como identidade. Cada livro funciona como espelho da humanidade, revelando a teia de suas complexidades.
O leitor procura a si mesmo, dentro de cada livro e personagem, na certeza de que encontrará respostas para suas dores ou dúvidas, na esperança de fazer descobertas, na expectativa de ser atendido na alegria de não se sentir só. O autor escreve no papel, o leitor escreve na tela mental.
O autor lê o leitor e por ele é lido, uma vez que personagens se repetem no imaginário popular. Aquilo que não foi encontrado nos livros, torna-se projeto de escrita para o leitor. Uma vez de posse da escrita, os papeis se invertem e novos horizontes são construídos para o deleite dos intelectos.
O ato de escrever expande a consciência do escritor. Ao escrever, o autor precisa pensar com lógica e pé no chão da realidade, tornando forte suas fraquezas, revelando-se ao avesso para não ser descoberto, denunciando injustiças para justificar seu vitimismo ou falta de iniciativa, talvez fazendo de sua palavra a arma de combate social.
Não basta doutrinar o leitor, isso também não é justo; não basta distorcer fatos históricos para vender uma ideologia, isso também não expande consciência nenhuma, tornando-se um grito no mato para ninguém escutar. A escrita precisa ser original, necessita acrescentar novos pontos de vista, convidando o leitor ao pensamento crítico, pois ninguém quer mais do mesmo. Escrita é atualização e ressignificação, afinal o tempo muda a sociedade constantemente.
O ato de escrever tem efeito terapêutico. Ao escrever, somos mais verdadeiros para com nossa visão de mundo. Escrevemos por acreditar que nossa voz deva ser ouvida, por acreditar que temos mais experiência e entendimento do que os outros, na ilusão de que estamos escrevendo para o mundo. Nada disso é verdade.
Escrevemos para nós mesmos, para nos dar mais uma oportunidade de sair de nossas limitações, já que somos seres reais, magoados ou incompletos, esquecidos ou cansados da realidade que não podemos mudar. Escrever recolhe material do subconsciente e da mente inconsciente, na tentativa de se tornarem conscientes, por isso o efeito terapêutico e revelador de autoconhecimento, onde criamos a própria saída, onde deixamos de ser parte do problema e passamos a ser parte da solução, ao entender que os problemas do mundo não são do mundo, são nossos.
Antigamente as pessoas enviavam cartas aos próximos mais distantes, sem saber que eram escritores. Abriam seu coração aos sentimentos, encorajavam-se a escrever o que não tinham forças para ser dito pessoalmente, explorando a intimidade pelas bordas, pela insinuação, pela conquista e pela articulação fantasiosa.
Perfumes eram vaporizados nas cartas de amor, ainda que compartilhados com o carteiro desconhecido. Mães derramavam amores sobre as linhas do papel, na esperança de trazerem o filho de volta. Amigos atualizavam suas aventuras, disputando vantagens da idade.
Notícias familiares chegavam com bastante atraso: a filha que vai nascer já está sujando fraldas, a viagem programada já foi esquecida por força das circunstâncias, a consulta médica do próximo mês já virou medicamento. Todos somos Escritores.
BENEDITO JOSÉ, escritor, integra a Associação Cultural dos Escritores de Passos e Região, cujos membros se revezam na autoria de textos desta coluna aos sábados