ANTONIO CONTENTE
Num envelope branco
Quando ele era menino gostava de ler revistas em quadrinhos; Gibis, como se dizia bem lá atrás, no meu tempo. Sabia tudo de Capitão Marvel, Superhomem, Homem Morcego, Tocha Humana, Homem Submarino etc. Certa ocasião, vendo o moleque vidrado no que lia, um velho tio, empresário em Mato Grosso do Sul que vinha muito a S. Paulo, batendo no ombro do moçoilo observou:
— Você precisa ler livros também, meu rapaz. Só revistas em quadrinhos é muito pouco para alguém inteligente que nem você.
— O que acontece, tio – ele respondeu – é que não consigo ler livros que não tenham figuras.
— Aí é que você se engana. Pois no livro que te empolgar, as figuras pintarão em tua cabeça.
Assim foi que já no dia seguinte o coroa entregava para o sobrinho dois livros de Edgar Rice Burroughs: “Tarzan dos Macacos” e “O Tesouro de Tarzan”. O rapazola pegou, revirou de um lado e outro os volumes, cada um com mais de 200 páginas sem nenhuma ilustração; e gemeu:
— Será que consigo ler?
— Tente – o coroa sorriu – logo as imagens aparecerão na sua imaginação. Que, tenho certeza, é fértil… Na minha próxima vinda a S. Paulo vamos conversar.
De fato era mesmo fértil a tal imaginação e deu certo. O moço devorou todos os livros do Rei das Selvas que encontrou nas livrarias, logo passou para Julio Verne e, lá adiante, já percorria outros; até chegar a Honoré de Balzac. Como consequência, passou também a querer escrever. E ia amontoando as coisas que redigia, já formado, professor concursado do Estado. Bom, mas foi aí que conheceu, na porta de um café, a simpática Nazaré. Em dois dias o namoro estava consolidado.
E nosso herói, que dava aulas de literatura, assim que o namoro foi engrenando, pelo menos uma vez por semana imprimia cuidadosamente alguma produção literária sua, em prosa ou versos, envelopava e entregava para Nazaré com um “pra você ler nas suas horas de ócio”. Só que, nas primeiras ofertas, ela ainda passou aquilo que se chamava de vista d’olhos sobre os textos. Na continuação, porém, recebia os envelopes brancos e ia amontoando numa gaveta, sem abrir. E o autor, que sempre desejava algum comentário sobre a produção, apenas esperou. Porém nunca teve coragem de cobrar.
Corre o tempo, um ano, mais ou menos e, certa manhã, o professor recebe uma carta. Era de advogado do Mato Grosso do Sul dando conta que seu tio empresário morrera repentinamente e, sem herdeiros, deixou para o destinatário da correspondência uma grande fortuna. Quase, para bem dimensionar a coisa, uma mega sena acumulada. No dia seguinte à noite o beneficiado já estava em Campo Grande. Sem revelar a ninguém, nem a Nazaré, que agora era milionário.
Voltando para S. Paulo, uma semana depois, a primeira pessoa que procurou foi a moça. E no encontro, durante o almoço, movido sabe lá por quais forças, o camarada pergunta:
— E aqueles escritos que venho te dando, posso saber se você leu algum?
— Ah, meu bem – ela foi de uma sinceridade rascante – leio sim, mas esse negócio de literatura não é minha praia. Sabe com que estou preocupada? É com o meu carro, que tá caindo aos pedaços.
Apaixonado pela moça que sequer podia imaginar que ele ganhara uma fortuna, nosso amigo toma resolução: vai ao banco onde pega, em dinheiro vivo, a quantia de R$ 200.000,00. Em casa arruma cuidadosamente as inúmeras notas com a estampa do lobo guará dentro de um daqueles grossos envelopes brancos para acondicionar documentos pesados.
Passou a ter certeza que, recebendo aquilo, logo a moça o procuraria para os agradecimentos de praxe, pois havia recado dizendo que a grana era para a compra de um carro novo; e, esquecendo os escritos que dera para ela e que nunca foram lidos, a pediria em casamento.
Passou ainda cedo no escritório da moça; fez e entrega, dizendo:
— Desta vez, tenho certeza, você vai amar essas coisas que escrevi. Estou indo de férias para a casa do meu tio, em Mato Grosso do Sul, o endereço e o telefone estão no envelope. Dá um toque pra mim.
Foi ao sair para o almoço que Nazaré voltou a ver o que recebera do namorado. Pegou o envelopaço, desceu e o colocou no banco de carona do carro. A meio do caminho, pensa:
— Desta vez eu acho que ele me deu um dicionário inteiro para ler, haja saco. Não vou ler isso nem morta.
Como naquele instante passava ao lado de um lixão em terreno baldio para os lados da Vila Brandina, pega o presente que recebera e o atira no monturo. Após o gesto, ao continuar dirigindo, se sentia leve, um verdadeiro Fernão Capelo Gaivota em pleno voo. E, à noite, os sem teto que costumavam fazer fogueiras no terreno para se esquentar do frio de junho, junto com muita pinga, colhem o envelopão junto com outros papéis e tascam no fogo. Para melhorar as labaredas.
ANTONIO CONTENTE, jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão.