SILVIA HELENA REIS.
O desafio de Adélia
Adélia chegou em casa e como sempre, a janela ainda estava fechada.
Isso era sinal de que ele ainda dormia.
A noite foi longa. Recheada de esportes, roteiros de passeios, conversas ao celular. Filmes.
Sentiu vontade de esquecer almoço, roupas para lavar, animais para alimentar…
Queria pegar o carro e ir visitar a Canastra com suas deliciosas cozinhas.
Pedir um suco e batatas fritas. Saborear devagar, olhando a paisagem verde deslumbrante. Ouvir o cantar dos pássaros, o som do vento nas árvores.
Bater um bom papo com alguém que falasse sobre o bom da vida, a esperança e o amor.
Poder escrever um belo poema. Afinal a natureza ali já era um belo poema.
Mas, naquele momento não podia se dar esse luxo.
A vida pedia solução. Aquela conversa não podia ficar para depois.
Na garganta um gosto acérrimo. Não podia desafinar agora como um instrumento abandonado no fundo de uma caixa.
O quanto pode suportar, suportou. Azedumes, ironias, silêncios inteiros, cama vazia.
Palavras violentas, cheirando ameaças veladas. Olhares inquisidores e acusadores. Arremessos de objetos. Noites sem dormir e choros intermitentes.
Seu amor se apequenava a cada dia. O peito acelerava como que prevendo uma catástrofe eminente.
Nada lhe era oferecido sem que a contrapartida fosse vantajosa.
Abriu a porta e caminhou para a cozinha para preparar o almoço.
Logo ele apareceria e ela gostaria de estar preparada e firme em sua decisão. Picava os alimentos com um sentimento de pena e revolta ao mesmo tempo.
Quando se sentaram à mesa para o almoço, não conseguia engolir as palavras. Não conseguia nem piscar os olhos. Foi logo dizendo de seu descontentamento.
As palavras brotando aos borbulhões.
Repugnou os momentos de lágrimas, de mentiras, de esperanças vãs.
Ele se levantou e caminhou em sua direção com olhar fixo.
Ela também se levantou e olhou sensitivamente para a faca junto aos talheres, propositadamente.
Quando ele já estava ao seu lado agarrou a faca com segurança e colocando-a entre os dois conseguiu mantê-lo longe o bastante.
Juntava as dores do peito como quem junta moedas para o café da tarde.
Sentia uma taquicardia imensa.
Era como se chegasse a um beco sem saída. A língua estava seca, as pernas trêmulas e os olhos vermelhos. Mas não chorou.
Ele gaguejou algumas palavras a princípio. Parecia também estar cansado de tudo aquilo.
Tomou um grande gole de água. Respirou. Tentou se explicar. Tentou convencê-la.
Deu um murro na mesa que deslocou os copos que ali estavam.
A mulher carregou- se de toda coragem, que tentava ser fraqueza, em seu peito.
Não queria nenhuma explicação. Como são tristes e vãs as explicações…
___ Foi só uma vez. Ele diz num sussurro.
Aquilo não era verdade. Não era verdade que ele achasse tão normal assim.
Ele havia traído. Não importava quantas vezes.
Havia traído todos os tratados, todos os limites de consciência e respeito. Todas as batalhas e até mesmo os afagos, os sussurros, os beijos nas madrugadas suadas.
Era sempre assim com os homens.
Para eles tudo era permitido. Natural era ser “homem”. Ser o dono, o senhor soberano, conquistador.
Adélia subiu as escadas e trocou a roupa.
Tantas coisas se desmoronando tão rapidamente. Sempre tudo tão igual. Agora não haveria volta. O ciclo fechara. As folhas de outono caiam e nova primavera logo chegaria.
Vestiu-se rapidamente sem se importar com ele a implorar que ela o ouvisse.
Pegou a bolsa e empurrou o marido de sua frente. Desceu as escadas cegamente.
Olhou para tras e disse:
___Quando voltar, não quero encontrá-lo mais aqui. Deixe as chaves em cima da mesa.
Não voltarei sozinha.
SILVIA HELENA DOS REIS, escritora e contadora de histórias. Membro da Academia Feminina Sul-Mineira de Letras e da Associação Cultural dos Escritores de Passos e Região, cujos associados se revezam na autoria de textos nesta coluna aos sábados.
Texto de Silvia Helena Reis.