ANTONIO CONTENTE
Hoje as chamadas “cervejas artesanais” tomam conta das prateleiras dos grandes supermercados, mas nem sempre foi assim. O que não quer dizer que, no passado, elas não existissem. Existiam sim, porém feitas por poucas pessoas. Algumas, até, obrando apenas para consumo próprio; ou para degustar com amigos.
Assim foi que, num dos meus aniversários, no século passado, uma amiga chegou ao apartamento onde eu então morava, no Cambuí, Campinas, trazendo vários pacotes. Ante meu natural espanto, disse logo que se tratava de presente pelo natalício.
— E o que você está me dando – perguntei – um ultraleve desmontado?
Ao mesmo tempo que depositava as coisas na copa, respondeu com um “você sempre soube que eu gosto de dar presentes práticos”. E após, a me olhar nos óculos:
— Como com essa crise que está aí pode faltar até cerveja, e sei o quanto você adora uma bem gelada, vou te ajudar a não ter problemas.
— Ótimo – coço a cabeça – mas, pelo formato dos pacotes que você trouxe, não se trata de garrafas.
— O problema – ela me encara com seu inegável encanto – é que não estou lhe dando um peixe frito.
— Não? – Levanto as sobrancelhas.
— Não, querido, eu estou te ensinando a pescar.
— Ora… – Eu tateava, meio em dúvida.
— Pois é – ela abre os braços – aí você tem uma mini-fábrica de cervejas. A partir de agora, você poderá fabricá-las aqui, na sua casa.
— Poderei? – Levo as duas mãos ao próprio peito.
— Claro – ela garante – até porque é facílimo.
— Mas e os ingredientes? – Indago – Onde vou achar os ingredientes?
— Ali – ela aponta para dois dos pacotes. Em seguida, enumera: — Te trouxe malte, lúpulo, fubá de milho, açúcar, fermento cervejeiro e o gritz…
— O que?
— Gritz – ela repete – mas não se impressione que é moleza manipular essas coisas. Exatamente como fazer uma limonada…
— Bem – volto a coçar a cabeça – não tenho, quanto às minhas habilidades, a mesma confiança que, a respeito delas, você demonstra ter.
— Então preste atenção que vou lhe dar uma aula, a partir da receita básica da cerveja escura, que é a que você mais gosta.
Dito isto, desembrulhou um belo balde de metal, explicando:
— Antes de começar o preparo, você ferverá, aqui, 20 litros d’água, filtrada, por 15 minutos. Quando terminar, faça a aeração.
— Aera… O que?
— Aeração. Passe o líquido de um recipiente para outro, várias vezes; a fim de que o oxigênio volte à H2O.
— Bom, parece fácil — admito.
— Claro – ela concorda – daí você coloca o lúpulo de molho em água durante uma hora.
— E o malte? – Arrisco, já com ares de entendido.
— Muito bem – ela aplaude – você lava o malte em uma peneira, como se lava arroz.
— E então está tudo pronto? – Meus pobres olhos se iluminam.
— Não – a linda amiga sorri – agora você bate o malte no liquidificador até formar uma pasta. Enquanto isso, numa panela, você coloca seis litros d’água, o malte triturado, o gritz e duas colheres de sopa de farinha de trigo.
Nesse ponto, mesmo percebendo que o negócio se complicava, continuei atento. A lição continua:
— Agora você pega aquilo ali, que é o termômetro-cervejeiro, para chegar à brasagem.
— A o que?
— À brasagem, que dará o mosto.
A aula ainda durou um bom tempo e bem depois, ao ficar sozinho, me encontrava não apenas cansado, porém quase exangue. Contudo, como a criatura que me dera o presente era, de fato, muito especial, arregacei as mangas e coloquei mãos à obra. Em pouco tempo minha copa e cozinha estavam transformadas num verdadeiro chiqueiro e, desesperado, quase chego a gritar.
Por fim, transtornado, liguei para a faxineira, contratei hora extra prometendo pagar em dobro, e, assim que ela chegou, eu saí. Direto para uma loja de importados, onde comprei uma caixa da cerveja irlandesa “Guinness”. Depois, com a casa limpa, fiquei quieto no meu canto; e, uma semana depois, chamei a amiga para experimentar “minha” grande obra cervejeira. Assim que ela provou o que servi de uma bela jarra de vidro, seus olhos brilharam e veio a exclamação:
— Meu Deus, você é um gênio. Isso está melhor do que a melhor cerveja europeia.
Poucos dias depois saiu uma bolsa de estudos que minha doce amiga esperava fazia dois meses, e ela viajou pra Londres. Naqueles velhos tempos, pré-internet, ainda se usava remeter cartões postais. Recebi um dela, passadas duas semanas, dizendo assim: “Ontem, após as aulas aqui, saí com amigos e tomei uma bela ‘Guinness’. Não sei por que, mas lembrei de você”. Até hoje, como casou com um britânico e não voltou mais pra Campinas, ainda desconfio que, de fato, ela sempre sacou o que havia na jarra que usei para servi-la…
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ANTONIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão.