9 de maio de 2024
Foto: Reprodução
Imagino que muitos não conhecem a obra. Talvez, jamais ouviram falar de Varlam Chalámov. Em razão disso, lembro a vocês que cheguei a escrever dois textos neste espaço – ambos estão na segundo edição do meu livro – sobre uma obra da mesma natureza, “Arquipélago Gulag”, do russo Alexandre Soljenítsin.
Em tal relato, estamos diante da chamada literatura de testemunho. A verdade despida de artefatos ou floreios, em cujas páginas estão as memórias do que foi realmente vivenciado. Um documento.
É que Soljenítsin havia sido prisioneiro do Gulag, um arquipélago situado na Sibéria que serviu de prisão para os condenados pelo tirânico e longo governo de Stálin, que perdurou de meados da década de 1920 a 1953, na antiga União Soviética.
Importante não esquecer os atos bárbaros do passado. Quem sabe, uma maneira para que as pessoas continuem sempre se opondo aos impulsos do arbítrio que germinem em qualquer país. Nunca estamos plenamente livres das tentações totalitárias. Há exemplos no mundo contemporâneo.
Quando li “Arquipélago Gulag”, fiquei bastante envolvido pelas dores dos prisioneiros. Creio ter até avançado para uma espécie de estudo, tamanhas as anotações que fiz dos mais abusivos desatinos aplicados a todos que lá cumpriam suas penas.
Pois bem, numa dessas idas a grandes livrarias, tomo em mãos os “Contos de Kolimá”. Seu autor, Varlam Chalámov, mais um escritor russo, que viveu entre 1907 e 1982, também foi um dos prisioneiros do terrível regime na Sibéria. Por lá passou aproximadamente vinte anos em trabalhos forçados de até 16 horas diárias nas minas de ouro e carvão.
Ao passo que “Arquipélago Gulag”, em suas 600 páginas, apresenta, além das profundas observações de Alexandre Soljenítsin, um retrato minucioso dos campos de detenção por meio de pesquisas em cartas e depoimentos dos condenados, “Contos de Kolimá” é exatamente o que o título expressa, uma série de episódios curtos, com base em tudo que ali testemunhou Chalámov.
Trata-se de estilos bastante diferentes para difundir as atrocidades, e não restam dúvidas de que a maneira utilizada nos “Contos de Kolimá” é bem mais fácil de ler. Kolimá, uma região do extremo leste da Sibéria, local onde as temperaturas chegavam a 60 graus negativos, possuía alguns dos locais de trabalho mais árduos da era stalinista.
Havia tantas histórias a contar, que Varlam Charlámov dividiu a obra em seis volumes. Mas a leitura da metade do primeiro já me foi suficiente para reviver o extraordinário suplício dos que estiveram sob os desígnios de Stálin.
No dia a dia daqueles infelizes, pude voltar a sentir toda a sorte de sacrifícios da labuta nas minas encravadas no gelo da Sibéria. Ali me vieram outra vez à memória as péssimas condições dos equipamentos e as ordens de desempenho para tarefas sempre hercúleas. Eventuais descumprimentos poderiam resultar em punições mais graves e até assassinato. Simples assim.
Como se já não bastassem os sacrifícios próprios dos trabalhos intermináveis, somos expostos a outros detalhes ainda mais drásticos: a fome pela fragilidade e parcimônia da alimentação oferecida, a insuficiência dos uniformes para suportar o frio de temperaturas abaixo de zero, os degradantes estados dos alojamentos e os danos inevitáveis à saúde.
As mortes − ou resultantes do gatilho de um chefe qualquer, ou mesmo da coragem para o suicídio −, poderiam ser uma porta de saída, e, no transcorrer dos contos, surgem algumas dessas possibilidades, que talvez fossem, de fato, as únicas que restassem aos detidos para a libertação dos martírios.
Mesmo assim, em diversas circunstâncias, o leitor vai deparar com um sentimento que é inerente a qualquer um, o instinto de sobrevivência. Sim, nas piores situações, sabe-se lá como, eis que renasce a luta por estar vivo, embora a morte represente esse alívio para tantas situações atrozes.
Compreende-se, por outro viés, que o desespero de viver em ambiente tão trágico os levava às artimanhas do ilícito, como o furto de alimentos, o tráfico de fumo para aliviar a fome, a traição a companheiros para se obter vantagens e a tentativa de adular chefes para subir de posto e executar tarefas menos penosas, todas essas questões que ainda existem no submundo dos cárceres.
Ao modo de escritores que narraram perversidades históricas, Charlámov deixa então ao leitor a mensagem de que o homem acaba se adaptando aos sofrimentos e tentando sobreviver em meio às carências de qualquer natureza. Nesse aspecto, reside a construção de seu estilo natural para descrever mortes, doenças e fome como simples acontecimentos do cotidiano.
Submetido à perda das ilusões, restou-lhe, portanto, anos depois da prisão, escavar a memória para legar ao mundo da literatura esses contos, que se constituem, à maneira de “Arquipélago Gulag, em documentos de enorme valor sobre tempos sombrios
Como em Soljenitsin, não foi necessário imaginar nada. Tudo estava ali, à disposição do seu desejo de transpor para as páginas as vísceras de um inferno que jamais vai ser esquecido.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)