Opinião

Clássicos das epístolas

15 de agosto de 2024

Foto: Reprodução

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO

 

Epístola, como se sabe, é uma correspondência escrita em forma de carta, seja em caráter público, seja em privado. Na Bíblia, um exemplo tão conhecido, temos as epístolas dos apóstolos dirigidas às comunidades cristãs e inseridas no Novo Testamento.

Por que me refiro às epistolas? Por que, dias atrás, eu trocava ideias sobre literatura com um desses amigos que se fazem pelo mundo virtual, Carlos Amadi. Ele também é um amante dos livros e possui uma biblioteca de valor, com obras de extrema relevância.

Pois no momento em que ele apresentava suas últimas aquisições, lá estava um clássico das epístolas, não as bíblicas − muito ao contrário. “Ligações perigosas”, do escritor francês Choderlos de Laclos.

A imagem da obra em uma de seus posts bastou para que eu lhe dissesse que a havia lido, mais precisamente entre janeiro e março de 2023, quando então publiquei aqui um texto a respeito, que não foi possível inserir na segunda edição do meu livro.

O advento das redes sociais possibilita contatos entre pessoas que gostam de temas em comum, embora não seja fácil poder trocar ideias a respeito da infinidade de obras que merecem considerações. Terreno de absoluta riqueza.

A menção àquele romance me trouxe à lembrança um fato que muitos de vocês devem ter vivenciado em épocas remotas, a escrita de cartas. Quantas vezes não estivemos à espera da chegada daquela correspondência de um amigo, um membro da família, um novo ou antigo amor?

“Ligações perigosas” é, portanto, um romance escrito inteiramente sob a troca de cartas entre os personagens, ora entre os dois protagonistas, ora entre os coadjuvantes − o chamado romance epistolar −, e vem com um enredo capaz de nos envolver plenamente.

Há muitas repletas de crueldade, quando os dois protagonistas se correspondem, mas também existem, em menor escala, as que expressam os bons sentimentos, quando partem de outros personagens, as vítimas da torpeza dos protagonistas.

Como já abordei o romance no texto anterior, meu intuito agora é apenas o de ressaltar esse modelo de comunicação que ficou num passado já distante, aquele em que a expectativa de escrever e receber cartas tocava as emoções.

Claro que a presença das ferramentas tecnológicas é um fato que já se tornou indispensável. Mas “Ligações perigosas” pertence a tempos em que a disposição de escrever sobre as esperanças, as angústias e os acontecimentos vinha por meio da troca de cartas, não por meros cliques rápidos, confusos e errôneos, como o que vê, muitas vezes, nas telas dos celulares.

Sim, a lembrança desse grande romance epistolar, com suas 411 páginas, para além das tramas diabólicas, antes de mais nada, significa um louvor ao ato de escrever, o estágio mais evoluído da linguagem. No momento em que imergimos na escrita, esse ato tão solitário, é que podemos sentir o verdadeiro poder das palavras reflexivas, seja para que finalidade o for.

A propósito, outro clássico das epístolas é “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria Rilke, um escritor húngaro, que, nascido em Praga, em 1875, e falecido, em 1926, na Suíça, fez carreira literária com destaque para as poesias. Consegui inserir a obra na segunda edição do meu livro.

O título o diz. O próprio Rainer Maria Rilke escreve dez cartas a um jovem, Franz Xaver Kappus, que, em dúvida, o procura em busca de orientações sobre seguir o ofício de escritor.

Em razão desse anseio, Kappus envia a Rilke algumas correspondências com textos para analise, mas recebe do poeta ensinamentos que ultrapassam as questões relativas à escrita em si. Rilke escreve-lhe então as dez cartas, num intervalo de cinco anos, em textos que são, ao mesmo tempo, profundos e simples.

Ser profundo, porém simples e ter o máximo de clareza são metas essenciais a quem se dispõe a escrever. Surgem, assim, as maravilhosas cartas, que orientam o jovem Kappus em detalhes preciosos aos escritores: saber estar solitário, ler bastante, aderir ao silêncio, observar os ambientes, voltar-se para si mesmo, valorizar a memória, a história, a imaginação, a infância, treinar a paciência, tentar compreender o amor, a vida, a morte, os conflitos.

Rainer Maria Rilke quer transmitir a Kappus quase que autênticas filosofias da existência, por isso suas palavras se revestem de beleza ímpar. São lições plenas por aglutinar os dois fatores, o literário e o existencial. O auxílio para libertar as palavras e se transformar em escritor/poeta viria, pois, abrangido pela imersão na vida.

Imaginem os sentimentos do jovem estudante Xaver Kappus. Quão imensas não terão sido suas emoções ao receber as cartas de alguém que ele vislumbrava como um grande conselheiro para a realização de seus sonhos! Quanta esperança ao receber as sábias palavras de Rilke não teria nutrido!

“Cartas a um jovem poeta” preserva, enfim, o status de mais um clássico do gênero epistolar por seu poder de nos impulsionar a inspiração e as reflexões em qualquer época em que venha a ser lido. Coisa rara em tempos tão fugazes.

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)