28 de outubro de 2024
Foto: Reprodução
Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho
Lembrança de dourado esplendor é Sãozinha me levando para ver filmes no antigo Cine Roxy, em Passos. “Antigo e dourado esplendor” não é bem a expressão. Mais certo é “antigo e terrível pavor, isto sim”.
Em tudo, a sinfonia angustiante do medo. Ah, mas quem disse que arredava o pé? De jeito nenhum. A trancos e barrancos, lá ia eu, agarrado às saias plissadas de minha irmã. Era assim: o filme começava, eu me ajeitava na poltrona, por vezes eu me abaixava.
E ela: – “Por que está se abaixando?”
Muito sem graça, respondia: “Estou amarrando o sapato”.
Sem tramela na língua, no providencial, a irmã corrigia:
– “Botina não tem cadarço, branquelo. Deixe de ser cagão”.
Foi dessa forma, um tanto confusa e traumática e não menos controversa, que me introduzi no clube dos cinéfilos. Ou Amante da Sétima Arte, segundo Ricciotto Canudo, no “Manifesto das Sete Artes”, em 1912, publicado em 1923.
Contrastante com a atitude medonha e aguda do meu comportamento na plateia, curioso era o olhar aceso com que, em casa, pedia à irmã para me levar ao cinema. Um paradoxo. Como pode, amarrar botina de goma ou sola de peão? Pura maluquice.
Faz tanto tempo. Ponho-me a pensar na origem desse trauma. Não era filme de terror. Como não havia morte explícita ou cenas de violência. Fosse hoje, vá lá
Era a imaginação prenha e terrível do lobisomem, do saci-pererê, da mula sem cabeça, entre outros personagens do mundo folclórico, que nossa mãe contava para sossegar o facho da turminha do barulho. Era assim.
Com isso, não se dormia de luz apagada. E com luz acesa, Siqueira Meirelles no comando, o coro comia à farta.
Ai, ai, ai! Quantas chineladas na bunda!
Mas, confesso, era feliz. Muito feliz. Com todas as nuances produzidas num ambiente familiar, onde havia ordem na desordem, graças aos chinelos de minha mãe e ao truque mágico de olhares fulminantes de meu pai, muita coisa boa acabou por acontecer.
Depois de tudo contabilizado, entre ativos e passivos, o que guardo em meio ao pavor e ao medo é a saudade de um tempo em que dele fazem parte dois personagens do mundo irreal e que ajudou a propiciar episódios do mundo real. O primeiro deles é Monteiro Lobato (1882-1948). Precursor da literatura no Brasil.
O segundo, tive a honra de conhecer sua casa em Natal, no Rio Grande do Norte, há muito tombada (Casa Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo). Trata-se do próprio, com sua chancela, o potiguar Luiz da Câmara Cascudo (1898-1986), sem dúvida, o maior folclorista do Brasil.
Ambos, cada qual em seu estilo, através de suas obras e criação, povoam e hão de povoar o imaginário do nosso povo. Quando me pergunto e do íntimo obtenho resposta: quem me curou do trauma do cinema, senão a riqueza e a magia da própria arte do cinema?
São pontos controvertidos a serem considerados, cujas explicações se concentram no mistério de espetáculos. E a vida, estreita e silenciosamente, sem percebermos, se mistura na sedução de inefável encanto.
O cinema desenvolveu-se em meio a profundas crises. Em tudo costuma ser assim. Crises fazem crescer e prosperar. O normal é o público ver e sentir os personagens na tela. No sentir de muitos, é que o público se veja, se aglutine e se movimente no centro das atenções, como partícipes das tramas a ele, público, impostas e condicionadas.
E se tiver que amarrar cadarço em botina de goma na magia de um Cine Roxy, muito melhor.
É a arte em festa. Viva o cinema!
LUIZ GONZAGA FENELON NEGRINHO, advogado, escreve aos domingos nesta coluna. (luizgfnegrinho@gmail.com).