ALEXANDRE MARINO
Encontro num armário uma velha caixa de fotografias, algumas bem amareladas. Fotos antigas são uma espécie de limite demarcatório entre um tempo que, apesar de persistente, não existe mais, e a revolução tecnológica que vivemos. As gerações nascidas a partir do final da década de 1990 são imediatistas no uso da fotografia, ao usá-la para “selfies” que serão divulgadas nas redes sociais e depois se perderão entre chips, pixels e algoritmos. O smartfone oferece tecnologia avançadíssima para fotografar com perfeição, o que também exige sensibilidade do olhar, mas é também um buraco negro que engole os excessos de um mundo imagético.
Naquela caixa as fotos se acumularam ao longo dos anos. No início, as melhores iam para álbuns que podiam ser comprados em qualquer papelaria, e as que sobravam iam para a caixa. Os álbuns eram montados a partir de temas, como aniversários ou viagens, e ali se escreviam a mão as principais informações sobre a imagem: data, nomes das pessoas que apareciam, local, etc. A fotografia não tinha objetivo imediatista, pois era um registro para o futuro, uma lembrança para um tempo sem data.
Encontro na caixa uma foto de meu pai, sentado na porta do Bazar Magom, em Passos, feita provavelmente em 1959 ou 1960. Estejam certos de que não faz tanto tempo assim, pela contagem dos calendários, a não ser que seja medido ao ritmo da evolução tecnológica, que torna aquele um momento pré-histórico. É uma foto em preto-e-branco, provavelmente registrada pela câmera Kapsa de minha mãe, adquirida naquela época para eternizar imagens da família que se formava. Ela pedia ao balconista do Foto Simosono para colocar o filme, o que de fato não era uma operação simples, e para retirá-lo depois de usado. As fotos, em número de 12 ou 24, ficavam prontas em dois ou três dias, gerando grande tensão e expectativa, porque ninguém sabia se ficariam boas, ou tremidas, ou se a luz estouraria ou sairiam escuras.
Quase esqueço de dizer que eu também apareço nessa foto, recostado na perna de meu pai. Devo ter entre três e quatro anos, e estou provavelmente vestido para a ocasião, usando short, camisa e boné do mesmo tecido estampado. Olho para a câmera com certa curiosidade. Já o meu pai se veste informalmente, como se vestia em suas atividades diárias de atender na loja ou ir ao banco, as mangas da camisa arregaçadas até a altura dos cotovelos. Sua mão direita segura alguma coisa não identificável; parece um maço de papéis. Está barbeado e usa um bigode fino, como usou ao longo de quase toda a vida. Já mostra os primeiros sinais da calvície com que nunca se conformou plenamente, vaidoso que era. Tem os cenhos franzidos, como se esperasse por um clique rápido, para voltar logo ao que fazia antes.
Meu pai está magro na foto, quase tão magro quanto numa outra foto, feita durante a lua de mel, em São Paulo, em que ele e minha mãe aparecem sorridentes e, creio, felizes. Não usa óculos, ao contrário de quase todas as suas fotos. Este não é o meu pai que conheci e com quem convivi durante décadas. A imagem registrada pela câmera naquela fração de instante guarda um homem sério e reflexivo, que entrava em nova fase de sua vida e apenas se preparava para se transformar no homem que de fato ele foi. A fotografia o paralisou naquele momento, mas é como se ele tivesse se desdobrado em dois a partir dali.
A fotografia, digital ou analógica, é uma técnica relativamente recente, não tem mais que 200 anos. Aquela que é reconhecida como a primeira fotografia foi feita em 1826 pelo inventor francês Nicéphore Niépce, mostrando uma imagem do quintal de sua casa, gravada durante 8 horas com uma técnica rudimentar. Na virada para o século 20 a fotografia começava a se popularizar, com o surgimento dos fotógrafos profissionais e depois os filmes de rolo, usados em câmeras pessoais. O custo era alto, mas eram comuns as fotos de famílias, em que os pais, sentados em cadeiras, eram cercados pelos filhos à sua volta, em registros feitos por fotógrafos profissionais e que persistem até hoje dentro de velhas caixas ou no fundo de gavetas.
Ninguém sorria nessas fotos, como se a ocasional presença daquelas pessoas no mundo fosse de uma seriedade muito intensa, que um sorriso poderia quebrar. Igualmente sério era o costume de fotografar crianças mortas. O índice de mortalidade infantil era altíssimo no início do século passado, e inúmeras famílias viviam a experiência de perder filhos antes de um ano de idade. Sem que tivessem sido fotografadas antes, essas crianças eram expostas a um fotógrafo para que sua última imagem pudesse ser preservada, não raro já dentro de um caixão.
Quando o velho sobrado de meus avós maternos acabou de cumprir sua missão de abrigar as três gerações que lá viveram, suas entranhas revelaram segredos bem guardados, entre muitos que se perderam. Um deles foi uma caixa de fotografias que guardava uma contradição. Feitas para manter viva uma recordação, essas fotos foram enterradas no esquecimento.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna