Opinião

As carpideiras

27 de maio de 2024

Foto: Reprodução

LUIZ GONZAGA FENELON NEGRINHO

 

O dia que pagarem para chorar por mim será literalmente o fim. Pelas nossas bandas, pelo que sei, não há mais carpideiras de bom calibre como antigamente. Eram contratadas para chorar bonito nos velórios.

Até certo ponto fazia sentido o meio de ganhar a vida. O cidadão não era lá bom de amizades. Só pensava no vil metal, mão de vaca na fiel expressão da verdade. Não ajudava ninguém. Vivia em função de acumular bens, sem atinar para o lado social no campo da solidariedade humana. De repente, morre. No monte, uma dinheirama para dar com pau, afora tantos e outros bens de raiz.

O que fazer nesses casos em que o cortejo fúnebre aponta que não haverá de ser dos mais apreciáveis, por assim dizer, dos mais concorridos?

Quando o falecido em vida era ruim de doer, mesmo com família e agregados em grande número: esposa, filhos, irmãos, sobrinhos, poucos amigos e companheiros, outra possibilidade não há senão admitir – para efeito de não passar vergonha alheia – que, no inevitável, algo precisa ser feito.

Consideremos, o falecido não era dos melhores, mas também não era dos piores. Não nos cabe julgar. Mas, velório vazio é velório tétrico, frio e sombrio como a morte. Fica-se nisso. Uma forma de polir com suavidade a situação existe. E que situação!

Nessa hora entram as carpideiras. As choradeiras profissionais. Contratadas a tempo e modo por determinado preço. Lá estão, prontas para realizar o que sabem e precisa ser feito: chorar o defunto. Pouco se lhes importa quem morreu. De pouca (ou nenhuma) importância. Pode acontecer, após receberem pelos serviços prestados (ninguém é de ferro), bebam pelo defunto devidamente chorado. Cada um é cada um, direito lhes cabe.

Quando garoto, conheci algumas carpideiras, tanto na ativa como em caráter de jubiladas, aposentadas, já longe dos holofotes. Se é que podemos falar assim. Curioso como repórter investigativo, à época trabalhava na Gazeta de Passos, parecia ter jeito para a coisa, eu me lembro de perguntar como faziam. Por exemplo, se não era difícil dar-se à tarefa, já que choravam por alguém que nem sequer conheciam.

Não me esqueço de ter ouvido o relato de uma delas: “Pagando bem, explicando direitinho como querem o choro, se moderado ou histérico, damos o melhor de nós. Se tivermos que escandalizar e beijar o falecido, bem, aí é mais caro”.

Deus meu! Há isso também? Beijar o defunto? Quando aventara a hipótese de perguntar se essa, digamos, ‘profissão’, não era um tanto quanto constrangedora (infame não é de bom-tom), obtivera uma resposta que guardo na lembrança junto às figurinhas de jogadores de futebol:

— “Uma profissão como outra qualquer. Não existem mulheres que vendem ‘momentos de prazer’ para desconhecidos por alguns trocados? Nós, não. Trabalhamos com rigor profissional, em meio à tristeza, para sanar ou diminuir a melancolia, ou o que for, de quem não sabe, não consegue ou não tem vontade de chorar. Às vezes, pelos familiares, a gente percebe, o desejo é rir pelo que se vai receber no inventário. Ou chorar de raiva pelas contas negativas e pela maldade praticada pelo finado em vida. Não se esquecendo, muitos visitantes de ocasião querem mesmo é fazer xixi na cova do falecido”.

Entre perplexo e estarrecido, não sabia até então do mercadinho sortido, de que falava Érico Veríssimo em uma de suas obras, porquanto existe de tudo um pouco nesse mundão de nosso Deus.

Pois é. Quem pensa que essa atividade extinguiu-se está enganado. Existem muitas carpideiras à espera de serem acionadas e contratadas. Autênticas artistas. Choram sem o menor pudor e sentimento de perdas queridas e não. Cobram adiantado para depois não dar BO. Sentimento humanitário, nesse particular, passa ao largo da Praça da Saudade. Cobram o combinado e muitas não deixam por menos. Vertem lágrimas escandalosamente aceboladas e com tal extravagância que as esposas dos defuntos chegam a desconfiar. Mais essa!

É desse modelo. Serviço bem feito passa por tais requintes. Se foi contratada para chorar, terá que fazer o serviço, que é prantear o falecido à moda da casa. Chorar bonito, lânguido, macio. Por vezes, fazer com mais apuro, bem desbragado, acachoeirado, que é para ninguém duvidar. Se o serviço não for bem executado, o preço cobrado poderá ser questionado e objeto de volta.

Tenho carradas de razão para assegurar que existem personagens nos dias de hoje que precisam de carpideiras para dar força e sustentação à miséria final de suas contas existenciais. Conheço alguns por aí. Só pensam em si, afligem e prejudicam o próximo. Esquecem dos demais membros da sociedade fraterna no espírito da caridade. Pelo visto, estão querendo reeditar com ardor e sem amor os préstimos das carpideiras. Quem sabe há tempo para se redimir. Não é mudando de cidade que se haverá a redenção.

Há muitos anos, os autores Evaldo Gouveia e Jair Amorim, deram musicalidade e poesia a Moacir Franco cantar: “Mas, se um dia eu tiver que chorar, ninguém chora por mim”.

Ainda somos autores de nossas ações, das quais devemos respeito e temor às reações. A maior das virtudes em duas palavras: amor-caridade. No suplemento, numa terceira lei de momento, a abnegação. Quanto a chorar por chorar, riamos todos, de graça e pela graça, especialmente pelo texto urdido no atrevimento do insólito: “As carpideiras”.

Com certeza, não é por falta de assunto.

LUIZ GONZAGA FENELON NEGRINHO, advogado, (luizgfnegrinho@gmail.com), escreve aos domingos nesta coluna.