5 de dezembro de 2024
Foto: Reprodução
Alberto Calixto Mattar Filho
Há alguns anos, numa grande livraria em São Paulo – sempre ressalto meu louvor às livrarias −, após adquirir a obra que eu desejava, um vendedor, que, para trabalhar em estabelecimentos dessa natureza, também precisa ser adepto da leitura, falou-me sobre “As brasas”, de Sándor Márai.
Sándor Márai nasce em 1900 em Kassa – hoje, Kosice, na Eslováquia – e morre em São Diego, na Califórnia, Estados Unidos, em 1989, quando decide dar fim à própria vida com um tiro de pistola. Sua vida foi bastante influenciada pelas duas Grandes Guerras, por isso debandou para outros países da Europa e Estados Unidos. Possuidor de espírito libertário, abominava quaisquer formas de totalitarismo.
Marái foi um escritor de língua húngara, já que sua cidade natal pertencia ao antigo império áustro-húngaro, que existiu entre as décadas finais do século XIX e início do XX. Além de gozar da admiração do público, a crítica o considerava um mestre do estilo. De volta a Budapeste, acaba por sofrer os efeitos da censura na época em que a Hungria adotou o regime comunista em 1948, o que o fez partir de vez para o exílio. Chegou a publicar 46 livros.
“As brasas”, apesar de breve, transmite ao leitor uma extraordinária imersão em valores típicos da natureza humana, como a amizade, a honra, a ética, a paixão e a busca da verdade, se é que haveremos de encontrar respostas para todos os dilemas. Em apenas 171 páginas, somos absorvidos, de forma plena, pelo texto. Não queremos concluí-lo, porém mergulhar sempre mais no que está diante de nossos olhos, pois reféns do que estaria por vir.
Sim, a literatura é também forma, essa bela arquitetura de palavras e frases. Mas “As brasas” alcança o ideal, a absoluta aliança entre o manejo da escrita e o conteúdo da história de dois amigos de infância que se reencontram, após 41 anos, a fim de passar a existência a limpo e tentar compreender o passado. Não se viam desde 1899.
É o momento em que o general Henrik, praticamente solitário em seu castelo na Hungria, recebe uma carta do velho amigo konrad, que pretende revê-lo. Os dois já estão com 75 anos, e o que vai preponderar no reencontro são as intenções do general em saber por que Konrad, de repente e em sigilo, vai embora para outros países depois de uma noite em que ambos saíram para caçar.
Entre eles, havia, contudo, um fator determinante, Krisztina, a mulher do general, já falecida há décadas. Ela foi uma pessoa sensível e bela, que, por sinal, lhe tinha sido apresentada pelo próprio Konrad naqueles longos anos de estudos e convivência que mantiveram.
Os diálogos dos protagonistas se iniciam então com extensas considerações do general sobre a amizade que os unia desde a infância até o instante da ruptura causada pela fuga do amigo. Aliás, diálogos em forma de monólogos, já que Konrad muito mais ouve do que se manifesta.
Logo se percebe que aquela amizade era algo raro de se atingir, apesar das diferenças de temperamento, gostos e visões de mundo. O general, um homem forte, prático, de origem aristocrática e experimentado em armas e batalhas. Konrad, de origem humilde, um sujeito mais recluso e movido pelo amor à música.
Sob o discurso do general, há páginas célebres a respeito do que significa uma verdadeira amizade. As relações com um amigo são mais sólidas do que as das paixões carnais, porque as amizades prescindem dos corpos e da tormenta dos desejos. As amizades autênticas não precisam de recompensas mútuas, apenas fluem sem os meros interesses de ocasião. Cometo a ousadia de uma síntese.
O que teria havido, afinal, naquela noite de caça, quando os dois portavam armas para buscar as presas que tinham em mira? Por que motivo a debandada de Konrad para países distantes no dia seguinte? Haveria ou não razões ocultas pela presença de Krisztina? Mistérios que vão penetrando a imaginação.
Em todo caso, como ocorre nos grandes romances, muito além da ânsia pela luz do que não se sabe estão as reflexões dos personagens. Muito acima dessa natural expectativa por desfechos claros está o sabor dos pensamentos.
Por meio da voz do general Henrik, temos, assim, todo um extraordinário passeio pelos efeitos do tempo na existência humana. Em outras palavras, o resultado que o passar dos anos provoca nas nossas atitudes perante o prazer, a dor, a euforia, o tédio, as perdas, os objetivos alcançados e as inevitáveis decepções que surgirão pelo caminho.
Só o tempo é talvez capaz de elucidar certos enigmas aos nos trazer ângulos muito mais profundos sobre nós mesmos e os outros. Apenas o tempo pode proporcionar o sentido da vida sem necessidade de respostas às eternas dúvidas ou perguntas que sempre vão ocorrer.
O tempo é a verdadeira e única luz. A sabedoria. A compreensão.
“…será que não é esse talvez o conteúdo mais autêntico de toda relação humana, esse altruísmo que do outro nada exige e nada espera, absolutamente nada?” (pág. 91)
Brilhante. Experimentem-no.
ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br).