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As águas de maio

Foto: Reprodução

ALEXANDRE MARINO

 

“De onde surgiu tanta água”, espantou-se o cavalo Caramelo, do alto de seu posto no telhado de uma casa de Canoas, no Rio Grande do Sul, onde esteve ilhado por quatro dias, de pé e sem comer, até que fosse resgatado por uma força-tarefa de bombeiros e voluntários. “Ainda bem que sou um cavalo”, pensou, “pois sou capaz de dormir em pé e ficar uma semana sem comer.” O problema é a água, não é, Caramelo? Essa água trouxe todas as formas de impureza imagináveis, dejetos que se perderam nas gretas do tempo, nas sarjetas, nas trincas, nos entulhos, nos lixões, até as impurezas da alma, do espírito, da ganância, da soberba, do descaso, das más intenções.

Caramelo é esperto, conviveu desde sempre com os humanos, puxando carroça e sabe-se lá para que mais foi usado. Certamente o afastaram de sua natureza, cavalo é bicho livre, gosta de correr nos prados, nas planícies. É o animal símbolo da formação do Rio Grande do Sul, companheiro no trabalho e no lazer, e até nos conflitos armados que marcaram a história do estado. Talvez por isso Caramelo tenha esquecido seu humilde passado de puxador de carroça para se postar, altivo, sobre o telhado, como a dizer: “Agora é com vocês, me tirem daqui.”

Caramelo não esteve sozinho na tragédia. Dezenas de outros cavalos foram resgatados, alguns morreram. Dez mil animais já foram salvos em meio às inundações que, desde 27 de abril, quando aconteceram os primeiros alagamentos, provocam o maior desastre ambiental registrado no Sul. O cientista e professor Rodrigo Paiva, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, calcula em 30 bilhões de metros cúbicos, ou 30 trilhões de litros, o volume de água despejado em uma semana de chuvas sobre a região do Lago Guaíba, que depois se espalhou pelos rios e planícies da Grande Porto Alegre. De acordo com o professor, é volume equivalente ao estocado no reservatório da Hidrelétrica de Itaipu, hoje a segunda maior barragem do mundo.

A água continua a subir, correndo o risco de agravar ainda mais a situação caótica da população de 445 municípios gaúchos, ampla e diariamente divulgada pela imprensa. São mais de 2 milhões de pessoas afetadas, 500 mil pessoas desalojadas e mais de 76 mil em abrigos; mais de 140 mortos; 160 mil km² atingidos; 300 mil edificações residenciais. Mil escolas estão fechadas, e 800 mil pessoas sem energia elétrica. Vistas do alto, vastas áreas do território gaúcho seguem cheias d´água, como um gigantesco lago que sempre tivesse sido assim.

As mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global, fruto da ação humana, tendem a normalizar esses eventos, não só no Sul, como em todo o Brasil e no mundo. Deveria haver um consenso entre os governos para enfrentar a situação, mas, contraditoriamente, um forte movimento negacionista se empenha em negar o óbvio: os alertas de 99% dos cientistas do mundo inteiro, que chamam a atenção para a necessidade de preservação do meio ambiente e da mudança de postura da humanidade quanto à exploração do planeta, que é nossa casa e não um poço sem fundo de riquezas.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que posa de bom mocinho, é um bom exemplo de negacionista. Em seu primeiro mandato, em 2020, ele alterou 480 normas ambientais do Estado, flexibilizando políticas que impactaram os danos provocados pelas chuvas. O Código Ambiental gaúcho, elaborado durante 10 anos, era considerado uma legislação exemplar, de acordo com estudiosos como o biólogo Francisco Milanez, diretor científico e técnico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Com o apoio da Assembleia Legislativa, Leite desmontou a legislação em 75 dias. Milanez, pós-graduado em análise de impacto ambiental, observa que o aumento do desmatamento em áreas montanhosas, em virtude das alterações do Código, contribuiu para as enchentes de erosão, intensificando as inundações. De 1985 a 2022, o Estado perdeu 22% de cobertura vegetal para plantios de soja e urbanização.

Eduardo Leite não é o único. Pelo menos 25 deputados federais gaúchos trabalham no Congresso para desmontar toda a legislação ambiental brasileira, atendendo principalmente os empresários do agronegócio e da mineração, com forte representação parlamentar. O Observatório do Clima, que reúne 25 instituições ambientalistas brasileiras e internacionais, alerta para a tramitação de 28 projetos de lei e emendas à Constituição que, aprovados, causarão retrocessos ambientais históricos. O chamado “Pacote da Destruição” prevê atentados aos direitos indígenas, liberação geral de agrotóxicos, incluindo aqueles proibidos no resto do mundo, flexibilização do Código Florestal, o fim do licenciamento ambiental, favorecimento à grilagem de terras, eliminação da proteção à vegetação nativa, exploração mineral em Unidades de Conservação, e muitas outras medidas profundamente danosas ao meio ambiente e ao futuro da Humanidade. Esses projetos tramitam sem discussões aprofundadas, atropelando até mesmo as normas do próprio Congresso Nacional. E avançam com o apoio de negacionistas de todos os tipos.

O cavalo Caramelo que se cuide, pois na próxima inundação pode não haver nem mesmo um telhado para ele se abrigar. Que se cuidem também os 12 milhões de brasileiros que vivem hoje em áreas de risco. Que nos cuidemos todos. O colapso climático está próximo. Não é o fim do mundo. É um mundo novo, mais inóspito e vingativo, que chega cobrando a conta.

ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna

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