4 de setembro de 2025
Foto: Reprodução
Nesses tempos em que muito se discute sobre democracia e ditadura, lembro-me de uma obra que talvez poucos se dispusessem a ler, tamanhos os detalhes chocantes do mais puro arbítrio que emana das suas longas 579 páginas.
Pois quando me decidi pela aventura, fiquei plenamente tomado por toda a sorte de abusos cometidos, na antiga União Soviética, durante as décadas de poder de um dos maiores déspotas da história, Josef Stalin.
O tema dos cárceres, sofrimentos e injustiças sempre me atraiu. Cheguei a publicar textos sobre “É isto um homem?”, de Primo Levi, a respeito dos campos de concentração de Hitler, e “Contos de Kolimá”, de Varlam Chalámov, que aborda as prisões nos gélidos campos da Sibéria, também em meio ao apogeu de Stalin.
A leitura de clássicos dessa natureza não deixa de ser válida para nos fazer refletir sobre o que realmente almejamos como indivíduos submetidos ao arcabouço das instituições, pois a trajetória dos poderes é vasta em exemplos do que se deve admitir, admirar ou combater.
Em razão do tema, republico, portanto, um dos textos que escrevi sobre “Arquipélago Gulag”, mas jamais sem as alterações − mesmo mínimas − que as reescritas costumam exigir.
O começo de uma obra reside em alguns momentos prévios até o ponto em que o leitor é realmente capturado pelo que se narra. São aqueles inícios que exigem certa persistência para se entrar em definitivo na história. Quando se entra, muitas vezes, não se sai imune ao relato.
Tal me ocorre, desta vez, não em uma obra de ficção, mas em episódios verídicos escritos pelo russo Alexandre Soljenítsin, no extraordinário “Arquipélago Gulag”, um volume de quase 600 páginas. Apenas um texto não será suficiente para transmitir as cicatrizes da leitura.
Difícil não se tocar com o drama de um imenso número de indivíduos que sofreram nas vísceras os arbítrios oriundos da ditadura revolucionária russa, que começa com a revolta dos bolcheviques em 1917, ainda nos tempos de Lenin, e avança sob o braço de ferro de Stalin, que governou a então União Soviética, de meados da década de 1920 a 1953.
O próprio autor, Alexandre Soljenítsin, foi um destes. Detido em 1945, enquanto ainda lutava pelo Exército Vermelho contra os alemães, foi condenado, sem julgamento, a oito anos de prisão e a mais quatro de terrível exílio em trabalhos forçados numa ilha do Gulag, um arquipélago ligado ao poder central do governo e usado como cárcere.
Tendo por base memórias e cartas de 227 prisioneiros, além de sua própria experiência pessoal, ‘Arquipélago Gulag” representa uma obra-prima da grande repressão soviética que se estendeu por tanto tempo.
Soljenítsin teve que trabalhar secretamente na elaboração do livro por dez anos, entre 1958 e 1968, em razão das perseguições políticas que continuaram existindo por décadas naquele país, mesmo após a morte de Stalin. Só conseguiu publicá-lo na França, em 1973.
Outras obras de sua autoria, que sempre demonstravam os abusos das prisões, também circularam de forma secreta nos anos 60 e despertaram o interesse das pessoas e dos círculos literários, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1970. Após viver anos no exílio, só voltou à Rússia em 1994. Morre em agosto de 2008, aos 89 anos.
Digamos que “Arquipélago Gulag” pertence ao gênero das memórias, mas não resume à mera reprodução dos fatos. Aliás, com base em documentos e depoimentos dos que sofreram o martírio, ali está a visão crítica do autor, que nos transporta para o inferno experimentado por pessoas que tiveram que sucumbir aos atos mais bárbaros da injustiça.
E o pior, atos de injustiça com as tintas da legalidade, dado o enorme volume de fraudes processuais aptas a gerar inúmeros prisioneiros sob as mais absurdas alegações de nutrirem o potencial de derrubar o poder.
Acabavam, assim, todos incursos num tal artigo 58 de um estapafúrdio código penal que os fazia sucumbir por meras suspeitas desprovidas de ações concretas. Desconfiar bastava.
São páginas e mais páginas de abusos de toda ordem, com enquadramentos múltiplos, aniquilação de defesas e confissão de culpas inexistentes em meio às ameaças dos interrogatórios.
A avalanche das penas de anos de prisão, de condenação a trabalhos forçados e de fuzilamento tornava-se, pois, simples rotina nos anos de Stalin. Nem seus aliados escapavam. Mais dia, menos dia, também eram considerados traidores e condenados às mesmas penas, numa interminável ciranda de punições do governo absoluto.
Ao elucidar um dos períodos mais drásticos da história em relação aos eternos males dos poderes que almejam se perpetuar, “Arquipélago Gulag” é obra de enorme importância para a compreensão do que pensamos e de como agimos enquanto indivíduos, sociedade e estado.
Alexandre Soljenítsin merece, sim, todo o reconhecimento por descortinar tempos tão sombrios da conduta humana.
“Escrever um livro como este é superior às forças de um só homem. Além de quanto eu próprio trouxe do arquipélago – na minha própria pele, na minha memória, nos ouvidos e nos olhos -, o material para construí-lo foi-me fornecido por relatos, recordações e cartas de ….” (segue uma relação de 227 nomes)
Alberto Calixto Mattar Filho escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)