Creio que já mencionei em textos pretéritos que, há muitos anos, quando me apaixonei pela obra do português José Saramago, um ateu convicto, decidi que precisava também ouvir o outro lado.
Refiro-me ao livro dos livros, a Bíblia, que, algum tempo depois, me veio às mãos por um presente da Maria Lúcia.
Desde então, ainda me sinto ainda bastante falho no propósito. Será preciso dar rumos muito mais efetivos à antiga intenção de prescrutar a Palavra e os textos sagrados.
Ao longo da existência, sempre procurei fortalecer os princípios de tentar dar ouvidos aos lados díspares que norteiam as atitudes humanas. Do ateu Saramago à Bíblia; do patrão ao empregado; do esquerdista ao direitista; das opiniões a favor ou contra políticos, poderes e instituições em geral.
Compreender que somos seres ambíguos e que podemos, sim, alterar rumos e pensamentos é, acima de tudo, assumir nossa multifacetada natureza humana.
Mesmo Ele, Cristo, vivenciou Seus conflitos, ainda que mantivesse Sua peregrinação em nome de Deus.
Escrevo da Itália nesses primeiros dias de maio de 2025, em momento de recente perda do líder maior da Igreja Católica.
Em razão disso e enquanto tento iniciar a leitura do Evangelho de São Marcos, trago à memória um texto que está na edição do segundo volume do meu livro e aborda a trajetória de Cristo, porém sob o arguto olhar de Nikos Kazantzakis
Já abordei, neste espaço, a obra “Ascese”, também de sua autoria, quando eu ressaltava que ele está certamente entre os maiores e mais conhecidos escritores da Grécia no século XX. Nascido na ilha de Creta, em 1883, e falecido na Alemanha, em 1957, formou-se em Letras e Direito pela Universidade de Atenas e estudou filosofia na Sorbonne, em Paris.
Bastante polêmico nos meios políticos, filosóficos e religiosos, ostenta, dentre seus livros mais famosos, “A última tentação de Cristo”, que veio a se transformar em filme no final dos anos 80. oitenta.
Finalmente, em 2019, concluí a leitura dessa extraordinária obra. Do princípio ao fim, somos levados a testemunhar, outra vez, a conhecida trajetória de Cristo, mas com os enfoques especiais de Nikos Kazantzakis.
Talvez não vá jamais haver, na história das religiões, outra existência tão pungente e capaz de arrebatar multidões de seguidores séculos afora. Ao menos nos relatos oficiais, nada se conhece, até hoje, de tão profundo e com frutos tão extensos.
Não me cabe penetrar em detalhes já por demais conhecidos das pessoas versadas nos ensinamentos bíblicos. Devo apenas conceber “A última tentação de Cristo” como um romance de grande qualidade.
Kazantzakis se utiliza de boa parte da vida de Jesus, para criar um romance sob o invólucro de muitas imagens fantasiosas, mas aptas a dar destaque às reflexões do Homem que sofreu como nenhum outro para nos transmitir valores gloriosos.
Na obra, o autor traz à tona as suas dúvidas, tormentos e sonhos. Embora imbuído da fervorosa missão de salvar a humanidade em nome do perdão, da generosidade e do amor, o decorrer das 509 páginas ressalta o seu lado humano e, por isso, não menos frágil, perante tantos erros e injustiças.
Seria Ele capaz de resgatar o mundo por meio de uma sublime doutrinação? Por que se incumbiria de tão pesado fardo? Por que não podia somente usufruir os prazeres de uma vida comum? “Pai, deixe-me. Amargo, imensamente amargo é o cálice que tu me ofereces. Não suportarei. Se possível, Pai, afasta-o dos meus lábios.” (pág. 442)
Vamos também percebendo, durante a leitura, os conflitos entre os pontos de vista dos personagens a respeito da melhor maneira de corrigir os desvios do homem, que, à época, tanto em Jerusalém, quanto nos arredores, já se faziam bastante presentes.
Poder e religião eram, portanto, vistos de forma drástica, imediatista e cruel, e havia quem pensasse diferente de Cristo. Judas e João Batista, dois de seus discípulos, imaginavam que somente um braço forte e disposto à guerra poderia ser capaz de derrotar os males que já se impunham nas condutas das pessoas. A enorme plebe, contudo, só queria saber dos milagres que Ele poderia fazer para abrir as portas do Paraíso terrestre a quem o seguisse.
Sintam: “A salvação não poderá vir ao mundo através do amor, da alegria, do perdão?”, indaga Cristo. “Como se pode eliminar a falsidade, a infâmia e a injustiça deste mundo sem erradicar os mentirosos, os injustos e os perversos?”, responde João Batista, em belo e conflitante diálogo entre ambos. (pág. 258)
Já entre os capítulos e páginas finais (456 a 509), a criatividade de Kazantzakis atinge o ápice, ao retratar, em nome do título, a essência da última tentação que ocorrera a Cristo logo após a ser crucificado, ou seja, a vida comum, com mulheres, trabalho e filhos.
São momentos célebres e que, de fato, consagram esse romance repleto de personagens marcantes, mensagens e diálogos os mais profundos. Destaque especial merece a troca de palavras entre Cristo e Paulo, Cristo e Judas.
Livres da defesa intransigente de doutrinas rigorosas e convictos de que à literatura cabe a criação de enredos também envoltos nas incertezas e angústias que assaltam o homem em quaisquer momentos, só nos caberá admirar o talento de Nikos Kazantzakis.
Nada melhor do que a vida de Cristo para dar fluidos à imaginação e às necessárias reflexões de cada um de nós diante de tudo que a vida nos proporciona.
Alberto Calixto Mattar Filho escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br).