ALEXANDRE MARINO
Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Com estas palavras, Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, redigiu a “certidão de nascimento” do Brasil, em abril de 1500. Assim ele reportou ao rei D. Manuel, de Portugal, as maravilhas da terra onde aportaram e recomendou que a aproveitasse, como se fosse uma terra sem dono.
Nos primeiros dias que passaram na terra desconhecida, os portugueses foram logo perguntando por ouro e prata, usaram e abusaram do espírito de colaboração dos indígenas, adotaram alguns como “pajens” e começaram a planejar sua catequização. E lançaram sua cobiça para a riqueza da terra. Aqui plantaram a semente do saque, da exploração predatória, da extração dos recursos até o esgotamento. Nos primeiros tempos, daqui levaram tudo que puderam carregar, e mais um pouco. Provocaram a extinção do pau-brasil, árvore nobre que deu nome à nova terra. Levaram o ouro, que inspirou o nome do estado onde ele existia em maior abundância, Minas Gerais. E chacinaram os indígenas, que ocupavam a terra brasileira há milhares de anos e dela sempre tiraram seu sustento sem destruí-la.
Ao longo de 500 e poucos anos, frutificou no cérebro e na alma dos brasileiros a mesma vocação do saque, da pilhagem, da dilapidação. Nossas últimas reservas de natureza original estão sendo destruídas em alta velocidade, de forma a não dar tempo para que a tomada de consciência, já tardia, o impeça. As elites do capitalismo brasileiro, que comandam a mineração e o agronegócio, avançam com seus tratores sobre a terra e tudo que houver sobre e dentro dela. Áreas gigantescas são desmatadas para dar espaço a uma população de 235 milhões de cabeças de gado, bem mais que os 203 milhões de cabeças humanas que aqui habitamos.
As águas, que segundo Pero Vaz de Caminha eram infindas, já não são. Em 30 anos, o Brasil perdeu 1,5 milhão de hectares de superfície de água, o equivalente a 47 vezes o reservatório da Hidrelétrica de Itaipu, uma das maiores do mundo. De acordo com levantamento do MapBiomas, rede colaborativa formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia que produz mapeamento anual da cobertura e uso da terra com dados a partir de 1985, o país está literalmente secando. Em 2023, a superfície brasileira perdeu 3% de água em relação a 2022, situação que vem se repetindo continuamente desde 2000. Em situação mais crítica está o Pantanal, que perdeu 61% de água em relação à média histórica medida há 38 anos, e onde a vegetação que resta é destruída por incêndios criminosos.
Todos os biomas brasileiros apresentaram redução hídrica nos últimos anos. Na Amazônia, a superfície de água sofreu no ano passado uma retração de mais de 3 milhões de hectares em relação a 2022. Essa destruição reduz os chamados rios voadores, os ventos que transportam a umidade da floresta em forma de chuva para outras regiões. Isso significa períodos de seca mais longos em todo o país, graças ao intenso desmatamento pela grilagem de terras, invasão do agronegócio, extração ilegal de madeira e o garimpo ilegal, que também destrói os rios.
No cerrado, que abriga oito das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras, grandes fazendas produtoras de soja, algodão e milho avançam sobre a vegetação natural e sobre os rios. A perda de superfície de água natural do bioma já atingiu 76% dos municípios, segundo o MapBiomas. A área de superfície de água natural foi reduzida em mais de 50% em 38 anos. O único aumento dessa superfície, registrado em 2023, de 9%, é devido à água estocada, em hidrelétricas ou reservatórios, o que também causa problemas ambientais, pelas alterações na fauna e na flora e no curso natural dos rios.
Uma impressionante série de reportagens publicadas nas duas últimas semanas pelo jornal Estado de Minas revela a completa destruição ambiental da região do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, envolvendo Norte e Nordeste de Minas Gerais e Bahia. Na região, imortalizada pela literatura de Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros, muitos rios desapareceram e a vegetação nativa, tão bem descrita pelo escritor em seus romances, especialmente o clássico “Grande Sertão – Veredas”, foi substituída pela monocultura do eucalipto. As veredas, formações vegetais complexas, úmidas e pantanosas, que funcionam como vias de drenagem em territórios secos, estão destruídas e irrecuperáveis.
Segundo o Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), do governo federal, mais de 3 mil dos 5.565 municípios brasileiros estão hoje em alguma situação de seca, classificada como fraca, moderada, severa e extrema, de acordo com os impactos na situação hídrica e nas lavouras. Passos, por exemplo, vive situação de seca moderada, mas alguns municípios próximos, como São Sebastião do Paraíso, Cássia e Jacuí, estão em seca severa. E o abastecimento de água em Belo Horizonte está ameaçado pela mineração na Serra do Curral.
A previsão dos pesquisadores é de que a crise hídrica será ainda mais grave este ano. E assim sucessivamente. Talvez dentro de alguns anos os sobreviventes da seca entrem em confronto pela última gota d´água.
ALEXANDRE MARINO, escritor e jornalista em Brasília/ DF, escreve quinzenalmente às sextas nesta coluna