PATRÍCIA PEREIRA
Trem bão é viajar. Se for junto com amigos, vira um trem bão demais da conta. As amigas de longa data já haviam compartilhado cigarros, batons e rolê, exceto uma viagem em comum.
O grupo aumentara. Já não eram apenas três. Junto com os parceiros, somavam seis amigos. Vencida a dificuldade de conciliar agenda e disponibilidade financeira de todos, começaram os preparativos para a viagem em conjunto.
Escolheram a Argentina. O país oferecia bons vinhos, ótima comida a preços justos e ficava logo ali. A maior aventura esperada pelo grupo seria enfrentar a fila do restaurante badalado apreciando um espumante geladinho.
Tão gostoso quanto fazer a viagem, foram os encontros para planejarem os cinco dias em Buenos Aires. Dentre os viajantes, havia dois opostos.
De um lado, alguém que viajava com a mesma frequência que respirava. De outro, um debutante na arte de fazer malas, trinta anos, primeira vez a voar.
A viajante fazia uma mochila com dois looks neutros, capazes de produzir quinze versões para trinta dias de viagem. Maior indicativo de ser traquejada na arte de viajar.
O grupo estava eufórico, muito mais pela estreia do amigo no avião e em outro país. A cada reunião havia uma nova dica da viajada, a principal delas: “Não se esqueçam, apenas o passaporte ou o documento de identidade recente serão aceitos na fronteira”.
O principiante foi muito bem avisado. Mas sabe-se lá por qual razão, no grande dia, contrariando as dicas da amiga, apresentou, apenas, sua carteira profissional.
Foi impedido de embarcar. No início, acreditou se tratar de uma brincadeira e insistiu sorrindo com a funcionária da companhia aérea. Recebeu a firmeza de uma resposta indigesta: “Desculpe, senhor, não poderá embarcar.” Foi a primeira vez na vida que o chamaram de “senhor”. Devia ser sério.
A frustração tomou conta do grupo. Em solidariedade, a namorada do novato cogitou desistir da viagem.
Outra viajante afirmou que também desistiria caso a amiga não fosse. Aquilo cheirava presságio de acidente aéreo, com a manchete bombando no jornal do dia seguinte : “Casal sobrevive a acidente aéreo porque esquece documentos” .O efeito cascata se instalou, o outro decidiu não ir porque a outra não iria e assim a tão esperada viagem foi michando.
Depois de muita murmuração, o bom senso voltou ao grupo e acordaram que apenas o inexperiente embarcaria depois.
A namorada ficou dividida, mas acabou cedendo aos apelos de todos (inclusive do esquecido) e viajou com os amigos. Embarcaram um pouco sem graça, solidários com a tristeza dela e com o desapontamento dele.
Só a amiga supersticiosa continuou vislumbrando a manchete do dia seguinte: “Rapaz sobrevive à acidente aéreo após esquecer RG em casa”. Por conta desse stress, ela inaugurou em alto estilo o banheiro do avião. Por medo de terminar sua linda vida solitariamente dentro do vaso sanitário de uma aeronave, descarregou suas necessidades fisiológicas sólidas com a porta do banheiro aberta e tendo como plateia a tripulação, que não sabia se ajeitava o gelo no carrinho de bordo ou se aplaudia aquele espetáculo bizarro.
No outro dia, chegou a notícia de que o novato não se juntaria ao grupo, a viagem transcorreria sem ele. Fazer o quê? Aproveitar a jornada.
A leal namorada tratou logo de fazê-lo lembrado todos os dias da viagem, para isso escolheu sua bolsa a tiracolo azul para representá-lo. Assim, ele os acompanharia em todos os lugares, visitaria poucos museus e monumentos, aproveitaria muitos bares e restaurantes.
Foi assim que uma bolsa a tiracolo ocupou o melhor lugar na mesa dos restaurantes. Passou a tomar decisões. Preferiu carne a frango, vinho tinto ao branco, cartão ao dinheiro. Foi assim que uma bolsa a tiracolo foi bajulada com a reverência de um rei. Foi assim que um grupo de amigos conseguiu transformar um saco de limão azedo numa deliciosa limonada, gelada é claro.
PATRÍCIA LOPES PEREIRA SANTOS, graduada em odontologia (PUCMG) e direito (Fadipa), mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional (Unifacef- Franca) e Especialista em Direito Público (Faculdade Newton de Paiva), é servidora pública do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. E-mail: acitripa70@ gmail.com