Opinião

A Insustentável Leveza do Ser 

10 de outubro de 2024

foto: Reprodução

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO 

A infinita riqueza do universo literário sempre nos deixará em falta com essa ou aquela obra.  Que bom! Jamais seremos atingidos pelos limites das bordas. Cumpro então o desígnio de mais um romance, “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera.  

Em meados de 2023, noticiou-se que Kundera nos deixara em definitivo, no dia 11 de julho de 2023, em Paris, o que povoou a mídia de matérias a respeito do escritor e me despertou o interesse da leitura do seu livro de maior repercussão.    

Nascido no interior da República Tcheca, em 1929, Kundera foi operário e pianista de um grupo musical antes de se tornar um grande escritor. Em razão de questões de natureza política, mudou-se para a França, por volta de 1975, e se instalou em Paris, onde adquiriu a nacionalidade francesa  

O exílio ocorreu em consequência das ações do regime comunista que se espalhava pelo Leste Europeu desde décadas atrás. Em 1968, Praga havia sido invadida pela União Soviética durante a “Primavera de Praga”, um movimento que se opunha ao arbítrio dos soviéticos − Milan Kundera, um dos entusiastas −, mas que não obteve êxito e causou perseguições, prisões, censura e execuções ao povo tcheco, esses já conhecidos e terríveis efeitos de quaisquer ditaduras.  

Em tal contexto é que se constrói a “A insustentável Leveza do Ser”, que foi lançado nos primeiros anos da década de 80. Um romance de pouco mais de 300 páginas, no qual se observa, mais uma vez, o poder da literatura em conciliar profundas histórias de vida e panoramas de época.  

Gosto de obras que me tomam na plenitude, momentos em que o ato de ler me faça imaginar e sentir o que se passa no outro. Vivi, pois, no íntimo, o drama dos personagens e a forma com que foi arquitetado um enredo que faz o leitor refletir o tempo todo sobre a condição humana. O binômio vida e literatura está, mais do que nunca, ali no texto de Milan Kundera.  

Temos a história de amor entre Thomas, um médico de Praga, que possuía vício em sexo sem compromissos, e Tereza, uma jovem sofrida e de relações problemáticas com a mãe, além da presença de outros dois personagens, a pintora libertária Sabina e o professor idealista Franz, que servem ao propósito de equilibrar a história e fortalecer as ideias do autor.  

 No entanto, o que importa não é somente o que se passa com cada um deles, ainda que as trajetórias de todos sejam muito instigantes e gerem curiosidade pelo deslinde. O maior valor da obra está nos fundamentos filosóficos e políticos que determinam as atitudes dos quatro protagonistas.  

Assim, tudo que lhes ocorre nos conduz a um oceano de questionamentos sobre as razões que os fazem agir desta ou daquela maneira. O prazer e a dor, que estão sempre presentes na vida de qualquer pessoa, são, portanto, elevados aos extremos, Na vertente política, por causa do despotismo da antiga União Soviética contra os países que estavam sob seu domínio.  

Quanto ao título em si, já representa um postulado filosófico. O que seria “A Insustentável Leveza do Ser”? Por que a leveza do ser se tornaria insustentável? Noutros termos, por que a eventual leveza da vida, já que única, efêmera, passageira, se tornaria um peso?   

Natural que almejemos a leveza que os prazeres possuem para suportar o peso de acontecimentos como as guerras, as doenças e as opressões políticas de déspotas que assumem poderes. Mas conseguiremos ser leves diante de dramas tão fortes?  Atingiremos, por outro ângulo, a leveza quando estão em jogo nossas complexas relações com os outros?    

São tais perguntas sem respostas claras que provocarão o aprofundamento na leitura. Com detalhes das filosofias de Nietzsche e Parmênedis, que vêm, de forma sucinta, esclarecidas no início da obra, Milan Kundera vai então conduzindo o leitor a refletir sobre os dilemas de Thomas, Tereza, Sabina e Franz.   

Como o próprio narrador indaga nas primeiras páginas, “o que escolher? O peso ou a leveza?” E, ao lançar mão de Parmênedis, emenda: “para o filósofo, o universo está dividido em duplas de contrários: a luz e a obscuridade, o quente e o frio, a alegria e a tristeza, a vida e a morte.  

Mas enquanto avançamos na obra, vamos também perceber que as escolhas dos caminhos não são tão simples assim, e que o leve e o pesado, ou o prazer e a dor, podem se confundir por circunstâncias que escapam ao nosso controle ou anseio.  

O fato é que somos seres ambíguos e tentamos encontrar sentido para a vida, muitas vezes, em meio às incertezas, aos mistérios, às opressões das ditaduras, aos relacionamentos conflitantes e às dificuldades dos ideais que não se concretizam.    

Não há como ler a obra sem que sua essência continue a nos incomodar logo após a leitura, como espécie de ondas que permanecem no espírito, tanto em relação às questões das cegueiras ideológicas dos comunistas, quanto no que se refere às condutas dos protagonistas perante cenários de tirania.  

Não há soluções fáceis, reduções confortantes, certezas prévias. Experimentem-na.

ALBERTO CALIXTO MATTAR FILHO escreve quinzenalmente, às quintas, nesta coluna (mattaralberto@terra.com.br)