Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho
Dizia Josué Montello, em Antes que os pássaros acordem, num de seus romances mais universais: “A injustiça que se faz a um homem é feita a todos os homens, porque todos os homens podem ser esse homem”. E eu arrisco completar: todas as mulheres também podem ser essa mulher. Principalmente num país onde o assédio moral e sexual ainda encontra espaço em ambientes de trabalho e silêncio nos corredores da justiça. Em pleno século XXI, ainda vemos mulheres constrangidas, humilhadas, tocadas sem consentimento, tratadas como se fossem parte do mobiliário ou da decoração – invisíveis quando gritam, evidentes apenas quando sorriem.
O mais estarrecedor é que tudo isso ocorre sob luz fluorescente, em escritórios climatizados, no ritmo cotidiano das empresas, entre um cafezinho e outro. Não se trata de casos isolados ou de fatos extraordinários que escandalizam o noticiário. Nada disso. São acontecimentos banais, corriqueiros, repetitivos, quase sempre varridos para debaixo do tapete corporativo. E o mais cruel: acontecem às pencas, dia após dia, como se fosse normal brincar com a dignidade de alguém, testar limites, invadir territórios alheios – principalmente quando esse “alheio” é o corpo feminino.
Muitos perguntam, como se estivessem diante de um mistério insolúvel: “Mas por que elas não denunciam?” E a resposta é simples, embora não seja fácil. Porque têm medo. Medo de perder o emprego, de serem julgadas, desacreditadas, humilhadas duas vezes – uma pelo agressor, outra pela sociedade. Porque, muitas vezes, são mães, chefes de família, esposas, filhas. Porque não querem manchar o próprio nome, nem transformar sofrimento em manchete. E, sim, há também aquelas que, por uma questão de sobrevivência ou deformação cultural, acabam achando que esse tipo de comportamento faz parte do “jogo”. Que é assim mesmo. Que não dá pra reagir. Mas não é. Nunca foi. Nem nunca será.
Assédio é crime. É violência. É covardia. E, mais que tudo, é uma agressão direta à honra. A honra não é uma palavra que se lança ao vento, sem valor ou propósito. Ela não tem preço, especialmente em ambientes onde deveria ser o alicerce inegociável de qualquer relação de trabalho. Mas aí você olha em volta e percebe que, muitas vezes, os próprios órgãos públicos, as instituições que deveriam dar o exemplo, estão infestados por práticas que envergonham até o silêncio. Casos e mais casos abafados, esquecidos ou ridicularizados. E os agressores? Seguem seus caminhos, de gravata engomada e falsa moral no bolso do paletó.
Quem caminha há tempos pelos bastidores da justiça conhece bem as sombras que por vezes habitam corredores iluminados. E se hoje se ergue a voz, não é apenas com o peso dos códigos, mas com a consciência inquieta de quem, antes de jurista, é parte viva de uma sociedade que já não pode mais pactuar com o silêncio. Como homem que acredita que nenhuma reforma trabalhista, por mais abrangente que seja, tem o direito de passar por cima da decência. É preciso lembrar que o trabalhador – mais ainda, a trabalhadora – segue sendo a parte mais frágil na equação do poder. E por isso precisa ser protegida, ouvida, respeitada.
Talvez este texto não mude o mundo, mas se for capaz de alcançar uma pessoa e lembrá-la de que não é normal sofrer calada, que não se deve baixar os olhos e seguir como se nada tivesse acontecido, então já terá cumprido seu papel. Porque a honra – ah, a honra – essa, quando ferida, sangra, mas quando se levanta, não se curva diante de ninguém.
Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho é advogado e cronista. (luizgfnegrinho@gmail.com).